Nos últimos dias, uma polêmica se instaurou em relação às encomendas da Força Aérea Brasileira (FAB) para o jato de transporte militar KC-390, fabricado pela Embraer, com a possibilidade de redução do pedido da FAB para apenas 15 aviões. Vamos relembrar alguns fatos e, na sequência, comparar com um programa de avião militar de outro país que sofreu, guardadas as devidas proporções, um problema semelhante: o caça francês Dassault Rafale.

Originariamente, o KC-390 teve 28 aeronaves contratadas em 2014. No “roll out” do primeiro exemplar, naquele mesmo ano, muitas esperanças foram depositadas nas possibilidades de exportação do jato de transporte militar, ainda que a concorrência fosse dura na categoria de capacidade de carga: o C-130 Hercules americano.

Poucos meses atrás, devido a dificuldades orçamentárias, esse número foi renegociado com a empresa para 22 exemplares, com uma cadência de entregas à FAB esticada no tempo e reduzida em alguns anos a apenas um avião por ano. E, na segunda-feira, foram publicadas notícias na grande imprensa e meios especializados em economia de que o objetivo da FAB é renegociar o contrato para 15 unidades. Esse número já havia circulado durante a negociação para 22 aviões, sendo que estudos para redução da encomenda vêm desde 2019, segundo a Força Aérea.

A decisão por reduzir e postergar entregas, por parte da FAB, pode ser considerada uma solução de compromisso para tentar equilibrar duas coisas: a capacidade anual de pagamento (a de hoje, não a da época do contrato original) e a necessidade de manter a linha aberta e o pessoal trabalhando, que é do interesse tanto da Força Aérea quanto da Embraer. A salvação para a cadência originalmente planejada ser retomada é conseguir mais contratos de exportação do avião. Por enquanto, há encomendas de Portugal e da Hungria, embora sejam relativamente poucas aeronaves, cinco e duas, respectivamente. Ainda assim, as sete unidades encomendadas por outros países compensam a redução na capacidade da FAB em pagar e receber seus aviões no curto prazo, e os primeiros exemplares dessas encomendas externas já estão em produção.

A situação é delicada, o problema é complexo, mas está longe de ser inédito no mercado aeronáutico de defesa. A negociação entre FAB e Embraer remete a um caso que ganhou bastante notoriedade na década passada: a decisão que o Ministério da Defesa da França tomou, em acordo com a fabricante Dassault, de reduzir a cadência de produção do Rafale ao mínimo possível para manter a produção do caça, nos anos seguintes à crise de 2008 e dos consequentes cortes no orçamento de defesa da França.

Rafale: de uma série de fracassos a uma coleção de sucessos

O voo do demonstrador de tecnologia do Rafale foi no já distante ano de 1986, e o primeiro protótipo voou em 1991. Cortes orçamentários e suspensões de contrato foram empecilhos para o programa deslanchar e somente em 2001 começaram as entregas, inicialmente da versão naval, para a Marinha Francesa. A Força Aérea Francesa começou a receber o caça em 2004. Os planos eram para encomendar quase 300 caças (1/5 para a Marinha, o restante para a Força Aérea) mas problemas orçamentários reduziram os contratos inicialmente para menos da metade disso, com possibilidades de ampliações posteriores. Elas vieram, e o número foi fechado em 180 caças para a França.

Tanto as autoridades governamentais quanto industriais apostavam que contratos de exportação compensassem os números menores efetivamente contratados. Porém, as encomendas externas não vieram na velocidade esperada para a Dassault, uma empresa acostumada desde a década de 1960 a boas vendas externas de seus caças das famílias Mirage III, F-1 e 2000. Na verdade, demoraram mais de uma década.

Não faltaram tentativas desde o início. E também não faltaram derrotas em concorrências internacionais, algumas esperadas por não haver tradição com alguns potenciais compradores, como o caso das ocorridas em 2002 na Coreia do Sul e em 2005 para Singapura. Outras, porém, foram amargas. A concorrência de 2007 no Marrocos era considerada uma grande chance. Derrotas na Suíça em 2011 e no Brasil em 2013 foram especialmente sentidas, como ficou claro nas notas divulgadas pela Dassault sobre os resultados nesses países. Em 2011, autoridades dos Emirados Árabes Unidos praticamente brecaram negociações nas quais a Dassault apostava alto, chamando a proposta da empresa de “impraticável”. Na Índia, a celebrada vitória declarada em 2012 num grande contrato de 126 aviões (a maior parte a ser fabricada no país asiático) foi seguida de anos de difíceis negociações que enfim estagnaram.

Nesse meio-tempo, veio a crise econômica de 2008 e reduções gerais nos orçamentos de defesa europeus, incluindo o da França. Sem contratos de exportação e com uma crise financeira que não dava margem à França comprar toda a produção anual originariamente planejada para o caça, foi preciso negociar uma solução de compromisso entre o MD francês e a Dassault: a cadência anual de produção foi reduzida para um mínimo de 11 a 12 aviões por ano, entregando unicamente para a Força Aérea e Marinha francesas.

Foi um período difícil, especialmente entre 2010 e 2015. A dificuldade de vender o Rafale era assunto corrente. Numa charge de 2010 do Poder Aéreo sobre os três caças finalistas do programa F-X2 da FAB, que ironizava o que cada “torcida” dizia sobre os caças dos torcedores “adversários”, o Rafale aparecia como o avião amado apenas pela sua mãe (a França):

F-X2, uma terapia de grupo

Apertaram-se os cintos no MD francês e na Dassault, enquanto os esforços de exportação ficaram ainda mais difíceis em meio às notícias negativas e às necessidades de continuar o desenvolvimento de versões mais avançadas do caça francês, em busca de mantê-lo competitivo. Mas, enfim, vieram os primeiros contratos efetivos de exportação, para Índia e Egito, em 2015, e isso se deu nada menos que 13 anos após a primeira derrota numa concorrência, em 2002. No caso da Índia, o fato da encomenda se reduzir de 126 aviões para apenas 36 foi parcialmente compensado por mudar de fabricação majoritariamente indiana para totalmente francesa, “de prateleira”. Outros países se seguiram, como Qatar, Grécia, Croácia, os próprios Emirados, a Indonésia, e hoje a carteira de encomendas externas do Rafale supera o total de pedidos da Marinha e Força Aérea francesas.

O resultado? A cadência anual foi ampliada após longos anos operando na cadência mínima e, em boa parte, foi dedicada aos clientes externos, enquanto o MD francês conseguia se readequar em seus orçamentos anuais. O sucesso de vendas externas chegou, mantendo a tradição da Dassault. Por essas e outras o reequipamento francês com o Rafale ainda vai levar muitos anos para terminar, o que continua sendo do interesse do MD francês para atender a outras prioridades orçamentárias. Depois de um período em que os primeiros esquadrões trocaram seus caças Mirage F1 e 2000C por Rafale (embora mais fossem desativados do que reequipados, num processo de grande racionalização), o ritmo de reequipamento foi reduzido e só há poucos anos o jato de ataque Mirage 2000N (de dissuasão nuclear) foi substituído pelo Rafale. Ainda há esquadrões franceses voando caças Mirage 2000-5 e exemplares das versões C e B de geração mais antiga, estes realizando a conversão para a primeira linha. E os jatos de ataque Mirage 2000-D, equipando uma Ala com 4 esquadrões, ainda continuarão na ativa por um bom tempo. Enquanto isso, a linha do Rafale é mantida principalmente pelo sucesso dos contratos internacionais. Bom para todos.

E o que isso tem a ver com o KC-390?

O histórico de produção do KC-390, comparado ao do Rafale, ainda é recente, guardadas as devidas proporções quanto ao tamanho dos programas. A negociação para reduzir cadência de produção e esticar ainda mais as entregas, adequando-as ao que a Força Aérea Brasileira consegue pagar anualmente, em meio a dificuldades orçamentárias, ainda é relativamente recente.

Algumas poucas encomendas externas ainda garantem um mínimo de ocupação da linha de montagem final e de entregas de fornecedores para compensar em parte a redução nas entregas para a FAB. A situação, como vimos acima na comparação com os longos anos de problemas enfrentados pelo Ministério da Defesa da França e pela Dassault em relação ao Rafale, ainda aparenta ser negociável.

O que o KC-390 precisa é de alguns bons contratos de exportação para escrever uma história parecida com a do Rafale francês, que depois de muitos anos angustiantes enfim se transformou de fracasso de vendas externas em sucesso, garantindo a continuidade de sua linha de produção. No momento, a aposta é um tour por 11 países da Europa e Oriente Médio. O Poder Aéreo deseja boa sorte e boas vendas. Histórias como a do Rafale mostram que é preciso persistir.

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