Entrevista da revista Manche com Alberto Martins Torres (1919-2001), o piloto que mais cumpriu missões no Primeiro Grupo de Caça na Itália

Dr. Torres, sou amigo do editor da revista “Manche”  e nós gostaríamos de prestar uma homenagem ao Primeiro Grupo de Caça pela passagem do seu 32º aniversário, publicando uma matéria no mês de abril. O senhor poderia colaborar conosco?

Claro. Com muito prazer. Você pode passar amanhã cedo aqui no meu escritório, que falaremos disso.

Na manhã seguinte, conforme combinado, lá estava eu, para falar com aquele que teve o maior número de missões durante a Guerra: um total de 100 missões, as quais estavam registradas na fuselagem do seu P-47. Cem missões, representadas por cem bombas pintadas em amarelo e divididas em grupos de cinco. Fui recebido gentilmente na sua confortável sala de trabalho e me senti bem à vontade para falarmos de muitas coisas, inclusive sobre um novo esporte, que é moda no mundo inteiro: as famosas pipas voadoras. Com esse bate-papo informal, presenciado às vezes pelo Brigadeiro Assis, seu companheiro de escritório e também integrante do 1º Grupo de Caça na Itália, e acompanhado de um bom cafezinho, começamos o nosso diálogo.

Dr. Torres, quando vocês chegaram à Itália, havia muita improvisação as instalações e imperava um desconforto geral, com o agravante mau tempo, por ser época de chuva. Tarquínia sendo uma base de pista de terra, não prejudicava as missões?

Quando lá chegamos, Tarquínia era, de fato, um acampamento bastante precário. Habitávamos barracas de lona, aquecidas por fogareiro a carvão. O conforto era relativo, mas não nos faltava o essencial. O nosso entusiasmo por estarmos ingressando numa fase decisiva de nossa carreira de piloto de caça supria inteiramente os pequenos desconfortos do dia-a-dia.

Penso até mesmo que a simplicidade e a dureza das condições daquele acampamento constituíam fatores que aguçavam a nossa vontade de enfrentar a grande missão.

As condições meteorológicas eram frequentemente adversas. A pista, no seu prolongamento com piso de terra, era coberta com esteiras de aço para não sofrer restrições operacionais em virtude da lama que se formava.

Em certos dias, o nosso primeiro inimigo era o mau tempo e a falta de visibilidade. Sempre conseguíamos vencer esta etapa da missão, mesmo com chuva e teto baixo. Com o perfeito apoio das estações radar de terra, que nos guiavam para os objetivos desejados, em voo por instrumentos com esquadrilha, conseguíamos um rendimento superior à média das esquadrilhas americanas, nas mesmas condições de tempo.

Quem o afirma é o Comando Aéreo Tático do Mediterrâneo em documentos oficiais ao 1º Grupo de Caça.

Bastante solicitados, por isso, para as missões em condições de tempo precárias, conseguíamos cumprí-las todas, sem nenhuma baixa que se devesse a essa circustância.

Mas, então, os pilotos americanos estariam menos preparados para o voo por instrumentos?

Não. Acredito mesmo que, de origem, estivessem mais acostumados ao voo por instrumentos do que nós. Na América a infra-estrutura de apoio para o voo sem visibilidade, naquela época, era infinitamente superior ao que tínhamos no Brasil. Em sua terra, voar no mau tempo, com todo o apoio, era rotina.

Já no Brasil, não havia o “prato feito”. Quando era preciso voar com tempo fechado, em regiões que inexistia o apoio necessário, como radiofaróis, rádiofaixas, radar de terra etc., ao piloto brasileiro de então restava o que chamávamos de “arco-e-flecha”, processo rudimentar em que a técnica era o “cisca”.

Cisca? o que é o Cisca?

Vem de ciscar, como as aves fazem, ao nível do chão, buscando seu alimento. Como disse, quando não tínhamos o prato feito, o jeito era ciscar: voar baixo, rente ao solo, por debaixo das nuvens, reconhecendo estradas, rios, vales e elevações, aldeias, tipo de vegetação e todos os outros marcos que pudessem informar aquele sistema primitivo de navegação, à falta de outros meios mais técnicos.

A verdade é que nós, brasileiros, trazíamos essa experiência que, em determinadas ocasiões, se constituía em utilíssima – complementação do voo por instrumentos, mais técnico, para o qual havíamos sido igualmente treinados.

Quanto à sua indagação sobre a possível deficiência do treinamento do americano, em face do problema do mau tempo, acho que já expliquei o que teríamos a mais – a experiência do cisca – sendo que resto, o treinamento era o mesmo.

Existe, entretanto, um outro fator que julgo relevante no caso do 1º Grupo de Caça, e que contribuiu para que o seu desempenho geral se destacasse. Trata-se da homogeneidade das esquadrilhas.

Pelo prolongado e completo treinamento que nos foi proporcionado no Brasil, no Panamá e nos EUA, chegamos à Itália com um grau muito elevado de integração dos pilotos.

Esta unidade de doutrina e de táticas, permitia, certamente um rendimento melhor do que o que poderia ser alcançado por outra unidades nas quais o rodízio dos seus integrantes resultava em desníveis de experiência dentro das esquadrilhas.

Nestas últimas mesclavam-se alguns veteranos com muitos pilotos bastante inexperientes. No nosso caso, havia um rendimento acrescido pelo entrosamento e perfeito conhecimento mútuo entre os pilotos.

No momento em que a maioria dos pilotos do Grupo havia atingido, digamos, o nível de 20 missões de guerra, tínhamos para todos os efeitos, esquadrilhas homogêneas, integradas todas por veteranos.

Isso significava mais desenvoltura na ação, maior confiança dos comandantes de esquadrilha no desempenho das missões…

Tenentes Rui Moreira Lima, Alberto Martins Torres e Renato Goulart Pereira

A propósito, gostaria de saber como os pilotos conseguiam atravessar a barragem de fogo antiaéreo para chegar até o alvo. Como isso era possível, sem maiores perdas?

Bem, assim, de primeira, eu diria que o ideal seria voar mais alto ou então, melhor ainda, voar muito baixo, como no cisca, lembra-se?

Mas, nem sempre podíamos optar por uma dessas alternativas extremas, pois os níveis de voo eram condicionados às características da missão.

Quando seguíamos para o objetivo que seria atacado em bombardeiro picado, a antiaérea que nos fustigava era o “88”, a mesma que perseguia as grandes formações de bombardeiros.

Eram baterias de tiro dirigido em que, por telemetria e mais tarde pelo radar, os artilheiros calculavam o rumo e altitude das esquadrilhas e regulavam as salvas, de acordo.

O recurso era abrir as distâncias entre os aviões da esquadrilha e, após a primeira salva, geralmente ineficaz, fazer mudanças de rumo em pequenos intervalos: um pouco para a esquerda e a salva seguinte espoucava na direção que seguíamos originalmente; um pouco para a direita, e nova salva na direção que seguíamos antes da mudança; novamente para a direita que o artilheiro também não é bobo… enfim, driblando, com base no conhecimento técnico daquele tipo de barragem.

Já durante o mergulho para o bombardeio baixávamos para os níveis letais das baterias de 40mm e 20mm. Nesse momento, nada a fazer senão renovada fé no Senhor – que desconfio não ser apenas brasileiro, como também piloto de caça – confiança na blindagem que protege o piloto e olho no objetivo. Era a fase da roleta: uns poucos premiados, outros não.

Depois vinham os ataques rasantes a diversos objetivos como locomotivas, viaturas militares, depósitos de munição etc., com o o emprego das metralhadoras e dos foguetes. Nesta fase já se podia optar, na medida em que se não prejudicasse a busca dos objetivos, pela alternativa do voo a altitude muito reduzida, num cisca para escapar às intempéries da antiaérea.

E o senhor chegou a ser abatido?

E não, mas o Brigadeiro Assis, então 1º Tenente, comandante de Esquadrilha, foi abatido. Após efetuar um ataque, a mais de 400 milhas por hora, sobre um comboio alemão, seguiu com o peito colado no chão para escapar à antiaérea. Por infelicidade, deu de frente com quatro bocas de uma posição camuflada que não perdoaram aquela insólita presença à baixa altura. Mesmo atingido, conseguiu alçar-se para altitude em que pode saltar de paraquedas. Foi prisioneiro de guerra, somente sendo libertado após o armistício da frente européia.

Qual era a esquadrilha do Brigadeiro Assis?

A esquadrilha era a “Green”, a verde. Seu avião era o D-2. A Green era particularmente coesa e aguerrida.

O senhor sendo recordista em missões a que atribui o fato de não ter sido abatido?

Sorte, meu caro! Pura sorte. Se você não considera isso uma explicação, é a única que me ocorre. Algumas vezes voltei de missões com o avião avariado, em menor ou maior grau. Certa vez o meu sargento mecânico esbugalhou os ollhos, logo que estacionei o P-47. Havia um furo, redondo e limpo, vazando a fuselagem de fora a fora, um palmo atrás da blindagem do meu encosto.

Tivesse sido dois palmos para a frente… já viu, não é? Outra vez, alguns projéteis de 20mm haviam penetrado o bordo de ataque da asa e estourado lá dentro, arrancando uma chapa inferior da asa.  Quando pousei, vinham penduradas duas fitas de munição ponto 50, que alimentavam as metralhadoras e que se alojavam dentro das asas. Era um barulho de lataria solta…

E dava para sentir, dentro do avião, o impacto das balas?

Dava sim, embora se forma atenuada, por causa do capacete, dos fones, do ruído do motor… era um ruído como pedrinhas de asfalto novo, quando bate nos paralamas do carro.

Bem, Dr. Torres, sei que o senhor é um homem bastante ocupado, e como já me ajudou – muito nesse compromisso com meus amigos da revista “Manche”, vou-lhe fazer a última pergunta: Como o senhor vê, nos dias de hoje, o Primeiro Grupo de Caça?

Vejo, não somente o Primeiro Grupo de Caça de hoje, como também as demais unidades de caça sediadas no centro, nordeste e no sul do país, como magníficas unidades, comparáveis às melhores de qualquer outra nação.

Todos os anos tenho a oportunidade de constatar o que afirmei, pois no dia 22 de abril, dia oficial da Caça, reúnem-se na Base Aérea de Santa Cruz, sede do Primeiro Grupo de Caça, todos esses grupos, para os festejos.

Após as exibições que atestam o elevado padrão técnico e tático dos jovens pilotos, sempre temos a oportunidade de confratenizar com os nossos colegas da atual geração.

Neste contato colhemos a confortadora certeza que o moral e o “esprit de corps” – perdoe o galicismo – dessa moçada é excelente.

Admiro-lhes a seriedade e a dedicação à caça: invejo-lhes o avanço tecnológico. Às vezes, conjecturo sobre o que para eles possamos nós, os primeiros, representar.

Talvez a imagem de termos, efetivamente, atingido a plena execução da missão de guerra. Talvez uma cordial, porém condescendente, certeza de que qualquer um de seus sofisticados F-5 ou Mirage leva um poder ofensivo superior a toda uma esquadrilha de nossos P-47.

Mas isto não é realmente importante. O que me parece mais significativo é a presença do sentimento de que pertencemos a uma mesma estirpe, sentimento mútuo que nos liga e que nos faz ver, sentir e falar as mesmas coisas. A despeito da defasagem cronológica.

Mesmo pilotando hoje uma possante “quadri-gaveta”, consigo extrapolar e entender o que o meu jovem colega deve sentir a velocidades transônicas.

Acho que ele, por sua vez, há de avaliar o que nós sentíamos na hora de “sentar a púa” no Vale do Pó…

O Tenente Alberto Martins Torres fotografado voando o P-47 A4
O Tenente Alberto Martins Torres fotografado voando o P-47 A4

FONTE: Revista Manche, abril de 1977

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