Além do Gripen – parte 2: conversa com piloto de provas da Saab e atualizações sobre o programa
Em 9 de maio, o Poder Aéreo cobriu a apresentação das instalações da Saab Aeronáutica Montagens – SAM – em São Bernardo do Campo / SP. Hoje publicamos a segunda parte da matéria, com mais informações e conversa exclusiva com piloto de ensaios em voo da Saab
Por Fernando “Nunão” De Martini
No mês passado, mostramos o andamento dos trabalhos para implantar a Saab Aeronáutica Montagens – SAM – a nova instalação industrial instalada numa área de cerca de 5 mil metros quadrados que o grupo sueco de defesa Saab, fabricante do caça Gripen, apresentou na cidade de São Bernardo do Campo – SP. Na ocasião, também compartilhamos informações de apresentações de executivos da Saab sobre o andamento do programa do caça Gripen para o Brasil, e que ao final de suas palestras responderam a perguntas da imprensa.
Sugerimos aos leitores que vejam a parte 1 desta matéria (clique aqui para acessar), que traz diversos detalhes sobre a SAM e como ela se insere numa série de decisões que vão além do Gripen: segundo os executivos da Saab e empresas parceiras, trata-se de uma perspectiva de longo prazo de transferência de tecnologia e capacitação para o parque industrial aeronáutico brasileiro, o qual poderá se inserir com maior presença na cadeia de fornecedores globais do grupo sueco, não apenas para a produção do caça supersônico, mas em outras oportunidades de negócio (tanto em produtos civis como militares). Nesta parte 2, o foco é trazer atualizações sobre o programa Gripen para o Brasil, em especial o andamento do desenvolvimento do caça, dos offsets (compensações) e da transferência de tecnologia, além de um bate-papo que tivemos com o piloto de ensaios em voo Hans Einerth, da Saab, que atualmente voa a aeronave de testes de sistemas 39-7.
A fase atual e os passos anteriores – Mikael Franzén, chefe da Unidade de Negócios Gripen Brasil, afirmou em sua apresentação de 9 de maio que, até o momento, os engenheiros brasileiros envolvidos no programa estavam dedicados ao desenvolvimento do Gripen E e F para o Brasil em conjunto com engenheiros suecos, em especial o modelo biposto F (até o momento encomendado apenas pela Força Aérea Brasileira, mas que poderá interessar potenciais compradores do Gripen E, monoposto). Já agora, além das atividades de desenvolvimento, que desde o final de 2016 envolvem também o Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen (Gripen Design and Development Network – GDDN) inaugurado em novembro daquele ano pela Saab e Embraer em Gavião Peixoto – SP, esse pessoal passa a participar de uma nova fase: a engenharia de produção.
A implantação da SAM para a fabricação de aeroestruturas, assim como o envolvimento de fornecedores locais para a fábrica, se inserem nessa etapa voltada à produção dos caças: das 36 aeronaves da encomenda brasileira, 15 serão produzidas no Brasil (incluindo as partes estruturais fabricadas na SAM), sendo 7 delas do tipo biposto (o primeiro Gripen F, biposto, dos 8 encomendados pela Brasil, será produzido na Suécia). A montagem final desses 15 caças será realizada nas instalações da Embraer em Gavião Peixoto. Espera-se a encomenda de um novo lote de caças pela FAB para a continuidade da produção da SAM, assim como o fornecimento de aeroestruturas fabricadas no Brasil para parte dos caças Gripen da encomenda da Força Aérea Sueca (que encomendou 60 caças Gripen E).
Vale a pena rememorar passos anteriores do processo para entender a nova fase, voltada à engenharia de produção: em 18 de dezembro de 2013, o governo brasileiro anunciou (após anos de postergação de uma decisão) que o Gripen de nova geração era o vencedor do programa F-X2 da Força Aérea Brasileira, para a aquisição de 36 caças, incluindo transferência de tecnologia. Passou-se a uma fase de negociação, cujos marcos foram 27 de outubro de 2014, quando a Saab anunciou a conclusão do contrato com o Brasil para o desenvolvimento e produção das 36 aeronaves, e a entrada em vigor do mesmo em setembro de 2015, quando todas as condições solicitadas foram cumpridas. No mês seguinte, foi iniciado o programa de transferência de tecnologia, com o envio dos 50 primeiros engenheiros e técnicos das principais empresas brasileiras parceiras do programa, Embraer, Akaer, Atech e AEL, para absorverem conhecimentos tanto teóricos quanto práticos, participando efetivamente das atividades de desenvolvimento do caça (on the job training – treinamento realizando trabalho). Em novembro de 2016, como já mencionado, a Embraer e a Saab inauguraram o GDDN no Brasil e, um ano depois, o número de engenheiros trabalhando nele somava 110 profissionais (90 brasileiros e 20 suecos).
Perspectivas do GDDN em Gavião Peixoto – O Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen (GDDN) em Gavião Peixoto é considerado, como a SAM, parte das compensações de offset do contrato dos 36 caças para a FAB, compensações que são investimentos da parte contratada (Saab) do programa e que deverão ultrapassar 9 bilhões de dólares. Parte desse investimento se dá no mencionado treinamento na Suécia de profissionais brasileiros. Como já mencionado na primeira parte dessa matéria, até 2024 cerca de 350 engenheiros, operadores, técnicos e pilotos do Brasil participarão de cursos e treinamentos na Suécia, num total de 3,5 milhões de horas de treinamento e troca de conhecimento, segundo Mikael Franzén. Isso está permitindo, conforme a Saab, que habilidades e conhecimentos sejam adquiridos pela indústria brasileira, num programa de transferência de tecnologia composto por mais de 50 projetos-chave, com duração de até 24 meses.
Até o momento 140 profissionais já passaram por esse processo, e parte dessas pessoas está trabalhando distribuída pelas empresas parceiras do programa, e parte está concentrada no GDDN: a perspectiva é que daqui a alguns anos o número de profissionais no centro de desenvolvimento em Gavião Peixoto passe dos atuais 110 para cerca de 280 especialistas. Material da Saab distribuído no evento de 9 de maio destacou que “o GDDN foi implantado com a missão de ser o eixo central de grande parte do desenvolvimento tecnológico do novo caça do Brasil pela Saab e pela Embraer junto a outras empresas e instituições parceiras”, sendo considerado “a base para a transferência de tecnologia” num “compromisso de longo prazo”. O centro contribuirá para a autonomia desejada pela FAB para o suporte logístico da aeronave e sua evolução com o tempo, de forma que a Força Aérea tenha independência na manutenção e integração de armamentos e sistemas.
Os engenheiros brasileiros que trabalham no centro têm se dedicado ao desenvolvimento do Gripen E /F, especialmente deste último (biposto), num ambiente de conexões seguras entre a sede da Saab, na Suécia, e os parceiros industriais do programa Gripen no Brasil. Trabalhando de forma conectada, o fluxo de decisões assim como os projetos de desenvolvimento são otimizados e, segundo a empresa, isso também se dará nos testes e verificação dos caças e de seus sistemas de suporte: futuramente o GDDN abrigará um Centro de Ensaios em Voo.
Uma conversa com Hans Einerth, piloto de provas da Saab – Falando em Centro de Ensaios em Voo, o Poder Aéreo reencontrou na apresentação da SAM o piloto Hans Einerth, que na ocasião da visita do site às instalações da Saab em Linköping, na Suécia (em maio de 2016, quando da apresentação do protótipo do Gripen E), foi um dos cicerones da visita ao hangar de aeronaves de testes da empresa. Na ocasião, o hangar abrigava o jato 39-7, chamado pelos pilotos de “dash seven” (traço sete). Trata-se do ex-demonstrador do Gripen NG (avião biposto remodelado a partir de um Gripen D para demonstrar as mudanças da geração seguinte da aeronave) e hoje aeronave de testes de sistemas, justamente o avião que Einerth pilota no programa de desenvolvimento do Gripen de nova geração.
Em 2016, a visita da imprensa especializada ao hangar de aeronaves de teste em Linköping foi dividida em duas turmas, e o Poder Aéreo foi guiado por outro piloto de provas, Marcus Wandt – piloto que atualmente voa o protótipo do Gripen E (aeronave 39-8) cuja apresentação foi feita naquela semana. Ao final desta matéria, falaremos mais dos voos do jato 39-8. Como em 2016 acabei conversando muito mais com Wandt do que com Einerth, devido à separação das turmas de jornalistas, a presença deste no evento de apresentação da SAM foi uma oportunidade para saber mais sobre os testes de sistemas realizados na aeronave 39-7, além de diversos outros assuntos.
Radar e peso máximo de decolagem – Uma das questões referiu-se ao radar Raven ES-05 AESA (varredura eletrônica ativa) do Gripen E/F, com antena reposicionável, fornecido pela Selex / Leonardo. A pergunta sobre como estava caminhando a integração do radar ao caça foi feita na coletiva de imprensa ao final da apresentação dos executivos, à qual Hans Einerth estava presente. O piloto respondeu que era ele mesmo o responsável pelos testes em voo com o equipamento, instalado no jato 39-7. Esclareceu que no momento se está trabalhando bastante com o radar, e que os testes estão de acordo com a capacidade esperada, com o radar desempenhando muito bem. Frisou também que ele equipará tanto os jatos Gripen encomendados pelo Brasil quanto pela Suécia.
Além de outras questões já apresentadas na primeira parte desta matéria, o Poder Aéreo aproveitou a coletiva para questionar um detalhe frequentemente lembrado pelos leitores do site, sobre o peso máximo de decolagem do Gripen E. Reparei que no material distribuído à imprensa, com características do caça, não estava divulgado esse item, mas apenas o peso vazio de 8 toneladas. Como é recorrente o questionamento sobre o peso máximo de decolagem ser, eventualmente, aumentado durante o desenvolvimento do caça para compensar a ampliação do peso vazio (que no início do desenvolvimento da nova geração do caça era estimado na faixa de 7,5 toneladas), perguntei qual o motivo da ausência desse dado no material e se havia possibilidade do peso máximo de decolagem ser aumentado. Einerth respondeu que não se está trabalhando com outro valor para o peso máximo de decolagem, e que este continua como divulgado anteriormente: 16,5 toneladas.
Ex-piloto de Viggen – Durante o coquetel que se seguiu às apresentações e à coletiva de imprensa, aproveitei que o piloto estava sozinho junto à réplica em tamanho real do Gripen E, que adornava parte do chão de fábrica ainda vazio da SAM, para uma conversa mais descontraída. Nesse diálogo, feito em inglês, pude descobrir que Einerth foi piloto de caça da Força Aérea Sueca por 17 anos, antes de se tornar piloto de ensaios em voo da Saab, há 5 anos, trabalho que ele pretende continuar fazendo até se aposentar. Fazendo as contas desse tempo voando jatos de alto desempenho, veio a pergunta inevitável: se ele voou o Saab Viggen antes do Gripen. Ele confirmou que sim.
O Viggen existia em versões distintas para emprego ar-solo (AJ37), ar-ar (JA37)e reconhecimento (SF/SH37), pois não era um jato multifuncional como o Gripen, mas uma plataforma da qual derivavam versões específicas. Assim, a questão seguinte foi se, como piloto de Viggen, sua especialização era como piloto de ataque, de reconhecimento ou de caça. “Air to air” (ar-ar) foi a resposta, e a conversa logicamente fluiu para as diferenças de pilotagem do Viggen e do Gripen em manobras de combate aéreo.
Hans Einerth, com sua cabeça raspada, tem uma aparência um tanto sisuda (já mencionamos em matéria anterior que, num filme de Hollywood com combates aéreos, ele provavelmente faria o papel do vilão), e tende à economia com as palavras em algumas partes da conversa, e isso pode enganar o interlocutor à primeira vista. Porém, na hora de descrever essas experiências de voo, o sorriso ia aparecendo cada vez mais no rosto do piloto, e os gestos mais contidos ficavam mais espontâneos.
Hans Einerth descreveu em alguns minutos de diálogo como o Viggen era um avião bem mais pesado, tanto no aspecto físico quanto nos comandos, e como o manejo era bem mais trabalhoso que o seu sucessor. Com palavras e gestos falou do emprego do manche com bastante amplitude, que praticamente colava nas pernas nas curvas mais apertadas, exigindo esticar e puxar bastante o braço. Em comparação, o manche estilo “joystick” do Gripen, com comandos fly-by-wire, leva a aeronave a manobras de alta carga G apenas com leves toques. Essas manobras também eram feitas de forma muito diferente no Viggen em relação ao Gripen.
Uma curva apertada com o Gripen é feita de forma precisa, com o caça seguindo exatamente a trajetória que se quer fazer, pois ao mesmo tempo em que os comandos eletrônicos fazem a aeronave desempenhar ao máximo, eles também impedem que ela fuja dos limites estruturais e aerodinâmicos, mantendo-a sob controle. Já na descrição de uma curva apertada com o Viggen, o termo correto em inglês para o que acontecia com a aeronave fugiu, momentaneamente, tanto para o piloto sueco quanto para o brasileiro que o questionava. Apelou-se para as mãos, e ele descreveu, com o pulso, a traseira do avião fugindo da trajetória, ou “saindo de traseira”. Então lhe disse: “Like a car?” (como um carro?) “Yes!!! Like a car” (sim,como um carro), respondeu sorrindo enfaticamente. Só mais tarde alguns termos em inglês equivalentes a “derrapar com o carro”, ou “glissar com a aeronave” vieram à mente, como “drift”, mas os gestos e as metáforas bastaram para a ocasião e ambos nos fizemos entender: ele com a vasta experiência em voos reais, eu com a lembrança das oportunidades em que “voei” em simuladores do Gripen.
WAD – Como já mencionado, Einerth não voa o protótipo do Gripen E (jato 39-8 apresentado em maio de 2016 e que realizou o primeiro voo no ano seguinte), o que está a cargo de seu colega Marcus Wandt, então aproveitei a conversa para relembrar a configuração do jato biposto 39-7, que ele voa para testar os diversos sistemas da nova geração do caça, na qual o posto dianteiro é igual ao de um Gripen D (com as mesmas telas, comandos e sistemas da geração atual do caça) e o painel do posto traseiro é configurado como um Gripen E, no caso da versão sueca, com três telas multifunção. Falando em telas, perguntei se ele já havia experimentado, nos simuladores instalados em Linköping para desenvolvimento do Gripen E/F, a versão com tela única de grande área (WAD – Wide Area Display) que equipará o Gripen E/F da FAB, e suas impressões como piloto sobre sua utilização, comparado ao uso do painel com três telas do avião 39-7 que ele voa.
O piloto de ensaios em voo respondeu que sim, já experimentou, e elencou os aspectos positivos mais evidentes e os desafios, ou pontos negativos para quem está acostumado ao sistema mais tradicional, a vencer: a grande tela única (19 x 8 polegadas) permite uma visão do cenário tático muito mais abrangente que a permitida por telas separadas de menor tamanho, o que aumenta a consciência situacional. É possível elencar exatamente o que você quer priorizar em dado momento, e ampliar essa janela na tela com comandos “touch screen” (toque dos dedos) como o mapa do teatro de operações, a imagem do radar, do sensor infravermelho, entre diversas possibilidades.
Por um lado, isso é fácil e intuitivo de fazer. Por outro, pilotos acostumados a telas separadas tendem a padronizar, pela própria doutrina estabelecida e ainda que as telas sejam multifuncionais, o que cada uma vai apresentar (dados táticos, radar, informações de navegação, voo ou motor) conforme suas posições no painel e olhar rapidamente o que se deseja, de forma mais “amarrada” porém intuitiva. A tela única muda esse paradigma, e é preciso mais disciplina e padronização de atitudes para não abusar da abertura de telas, ampliação das mesmas e posicionamento das janelas abertas de informações na tela única, para que as informações que você resolveu priorizar sejam vistas rapidamente quando se desvia o olhar do ambiente externo para o painel. É uma nova forma de gerenciar as informações de combate, e doutrinas precisam ser estabelecidas para que toda a ampliação de consciência situacional seja aproveitada plenamente. Nas fotos abaixo, outras partes da cabine mostrada na réplica do Gripen E.
O WAD fornecido pela empresa AEL, que recentemente entregou o protótipo do modelo C do sistema, está passando por desenvolvimento e testes na Suécia, focados no momento na interface homem-máquina, segundo informações do executivo Mikael Franzén durante a coletiva de imprensa. Essa interface, além do uso do recurso touch screen, pode ser feita pelas teclas na moldura da mesma e do sistema HOTAS (hands on trottle and stick – mãos na manete e no manche). O modelo C é resultado, segundo a AEL, de evoluções e melhorias desenvolvidas a partir do modelo B, entre elas uma nova placa gráfica para aumentar a capacidade de processamento e desempenho na apresentação das imagens, acréscimo de funcionalidades ao software e ensaios de vibração e temperatura.
Expansão do envelope e protótipo brasileiro – Sobre o colega de Einerth, Marcus Wandt, este tem trabalhado bastante na expansão do envelope de voo do Gripen E, que é justamente a função da aeronave 39-8, enquanto o antecessor 39-7 testa os sistemas. Como a nova geração do Gripen tem os softwares / códigos fonte que controlam sistemas de missão separados dos que controlam o voo em si, essa separação de trabalho entre as aeronaves permite avançar com vários itens do programa de testes simultaneamente.
Durante a coletiva de imprensa, o executivo Mikael Franzén frisou que, no início do próximo ano, começarão os testes em solo do primeiro Gripen E destinado ao Brasil, atualmente em montagem final e integração de sistemas. A aeronave também realizará seu primeiro voo em 2019, juntando-se ao 39-7 e ao 39-8 na campanha de testes e certificação. Faltou perguntar a Einerth se, com a inclusão do avião da encomenda brasileira no programa de ensaios, ele e Wandt também se revezarão nas missões de voo com a aeronave, na Suécia. A pergunta ficará para uma próxima oportunidade, conversando com Hans, com Marcus, ou, quem sabe, com um piloto brasileiro de Gripen. A conferir!