Como um trágico acidente na FAP mudou o destino do KC-390 em Portugal
A perda do C-130H ‘16804’ fez com que o Ministério da Defesa de Portugal revisse o programa de modernização dessas aeronaves.
por Guilherme Poggio
Passava do meio dia na Base Aérea de Montijo e uma equipe da Esquadra Bisontes seguia realizando voos de treinamento ao redor da base com a aeronave C-130H Hercules matrícula 16804. O objetivo daquele treinamento era qualificar a tripulação em manobras no solo, abortagem de decolagem, voo alto e circuito de aproximação.
Durante uma manobra programada de abortagem de decolagem a tripulação perdeu o controle da aeronave. O C-130 saiu da pista e um incêndio irrompeu a partir da zona do trem de pouso próximo à raiz da asa direita. O fogo se propagou rapidamente pela aeronave e, na incapacidade de deixar o C-130 pelo compartimento de carga, quatro tripulantes escaparam pelas janelas do cockpit. Os outros três tripulantes não conseguiram deixar a aeronave.
O trágico acidente narrado acima ocorreu pouco menos de um mês após a publicação da autorização para o início do processo de modernização dos C-130 da FAP. Como um dos Hercules já estava encostado a anos (servindo como fonte de peças para manter os demais voando) a frota ficou muito reduzida.
Levar adiante um processo de modernização e ao mesmo tempo dispor de poucos aviões no esquadrão para executar todas as tarefas da unidade não parecia ser uma opção viável. A viabilidade da modernização começou a ser questionada. Pode-se dizer então quer a partir da tragédia na Esquadra Bisontes nasceu a opção pela renovação completa da frota de C-130 da FAP.
O início
As entregas dos cinco primeiros C-130 da FAP começaram em agosto de 1977. No dia 15 de setembro do mesmo ano os primeiros dois C-130H da FAP pousaram em Portugal e esta data é considerada como o aniversário da Esquadra (“esquadrão” no Brasil) 501 “Bisontes”, unidade especialmente criada para a operação dos C-130H.
A origem do nome da unidade está ligada à presença de diversos bisões que existiam próximos ao local onde as primeiras turmas fizeram o curso da aeronave nos Estados Unidos.
Sediada na Base Aérea de Montijo (Base n.6) desde a sua criação, a Esquadra 501 teve como funções o transporte e o patrulhamento marítimo (missões primárias e secundárias respectivamente). Porém, com a incorporação do P-3P Orion posteriormente a Esquadra 501 passou a se dedicar exclusivamente às missões de transporte.
Dois seis C-130H, dois (matrículas 16801 e 16802) foram modificados para a versão C-130H-30. Esta variante do Hercules possui uma fuselagem mais alongada que a aeronave original através da introdução de dois anéis que aumentaram o comprimento total em 4,572 m. A capacidade volumétrica do compartimento de carga é aumentada consideravelmente, mas pouco afeta a performance do aeronave. O peso vazio aumentou em 300 kg.
O serviço de alongamento da fuselagem foi feito nas oficinas da OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal S.A. A OGMA é um dos vários centros mundiais certificados para realizar revisão, manutenção e alongamento de aeronaves C-130 nas versões A até H. A empresa possui 40 anos de experiência em manutenção desse tipo de aeronave e já executou mais de 400 revisões em Hercules de diferentes países.
Tempos depois, em 1991, outro Hercules (versão estendida) foi adquirido, perfazendo uma frota total de seis aeronaves.
MODELO | C/N (LOCKHEED) | MATRÍCULA | OBSERVAÇÃO |
C-130H-30 | 4749 | (6801) 16801 | |
C-130H-30 | 4753 | (6802) 16802 | fonte de peças |
C-130H | 4772 | (6803) 16803 | |
C-130H | 4777 | (6804) 16804 | perda total |
C-130H | 4778 | (6805) 16805 | |
C-130H-30 | 5264 | (6806) 16806 |
Atuação global
A ficha corrida dos C-130 da FAP é bastante longa e comumente estes aviões voam além das fronteiras portuguesas. Paralelamente aos interesses nacionais no estrangeiro, Portugal regularmente participa de missões de paz patrocinadas pela ONU e missões militares da OTAN (como membro da aliança militar do Atlântico Norte). Países e locais geográficos como Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde, Timor, Golfo Pérsico, Afeganistão, Ruanda, Balcãs, Haiti, Egito e Líbia.
Mais recentemente os Hercules da FAP colaboraram com a MINUSMA (Missão Integrada Multidimensional de Estabilização das Nações Unidas no Mali). Naquele país africano, as forças portuguesas mantiveram até recentemente uma base no campo Bifrost, próximo ao aeroporto da capital Bamako.
Portanto, a FAP tem necessidade de uma aeronave que possa cumprir estas e outras missões. Muito se falou da eventual aquisição do avião de transporte Airbus A-400M. Portugal fez parte do programa de desenvolvimento do avião de transporte estratégico A-400M, mas abandonou o consórcio multinacional em 2003 por total falta de fundos para comprar três dessas aeronaves.
Posteriormente a Lockheed noticiou estar oferecendo a Portugal a versão C-130J e a Boeing o C-17. Mas as restrições orçamentárias permitiam, no máximo, uma modernização simples das aeronaves existentes.
Falta de modernização
Mesmo Portugal tendo uma das mais antigas oficinas com certificação para fazer inspeção nível parque em aeronaves C-130 Hercules, nenhum C-130 da FAP recebeu profundas e complexas modernizações. Três dos seis C-130 tiveram a fuselagem alongada nas oficinas da OGMA (conforme citado acima), mas o grupo propulsor e os aviônicos continuaram os mesmos da década de 1970.
O desejo de modernizar as aeronaves vem desde a década passada, quando os Hercules da FAP começaram a enfrentar restrições para sobrevoar o território europeu. No começo do século XXI a União Europeia passou a trabalhar num projeto de controle aéreo comum e em 2009 entrou em funcionamento o regulamento SES (Single European Skies). O SES passou a restringir fortemente o voo de aeronaves que não estivessem adaptadas às suas diretrizes.
As restrições se dão principalmente pela ausência de modernos equipamentos de comunicação e navegação mas aeronaves. Os C-130 da FAP não possuem diversos aviônicos como o TCAS (anti-colisão) e outros, que agora são exigidos pelo regulamento SES. Sendo assim, as aeronaves ficam restritas nos aspectos relacionados a corredores aéreos, altitudes e velocidades.
Em 2009 não sobraram recursos da Lei de Programação Militar para modernizar os C-130 e o processo foi adiado. Novas esperanças surgiram no começo da década atual e em 2012 o Ministério da Defesa finalmente autorizou gastos de até 12 milhões de euros para o processo de modernização de seis aeronaves, mas não apareceram candidatos para a execução dos serviços porque o valor era muito baixo.
Conforme o processo de modernização ia sendo adiado, o desgaste das aeronaves aumentava. Por volta de 2014 a frota já estava restrita a cinco aviões, pois um dos C-130H-30 (matrícula 16802) servia de fonte de peças (“canibalização”) para manter os demais em voo.
No início de 2016 o Ministério da Defesa de Portugal havia refeito os cálculos e estimado que o valor necessário para se modernizar cinco C-130 deveria ser de 29 milhões de euros. No entanto, os recursos necessários não estavam disponíveis mais uma vez e Portugal passou a ventilar a possibilidade de fontes externas de financiamento como fundos da União Europeia.
O anúncio da autorização do processo de contratação de empresa para modernização dos aviões deu-se em junho de 2016. O processo ocorreria via FMS (Foreing Military Sales) segundo um calendário de despesas que iniciaria naquele ano e seria completado somente em 2023. Ou seja, o processo de modernização dos cinco C-130 se arrastaria por seis anos. De qualquer forma, a expectativa era manter os Hercules em atividade até 2030.
Pouco menos de um mês após a publicação da autorização para o início do processo de modernização dos C-130, a FAP perdeu o Hercules “16804” num acidente na Base Aérea de Montijo. Sendo assim a FAP ficou com apenas quatro C-130 no inventário. Esta quantidade era insuficiente para todas as atribuições da FAP.
Cabe lembrar que durante a atuação portuguesa no Afeganistão na década passada, até dois C-130 estavam dedicados ao esforço da OTAN naquele país asiático e outra aeronave estava em revisão/manutenção em Portugal. Ou seja, apenas metade das aeronaves estavam disponíveis.
Por sorte muito do trabalho dos C-130 foi aliviado com a aquisição dos CN-295 (cujo contrato foi assinado dez anos atrás), mas estes últimos não podiam substituir os Hercules em muitas missões.
A chance do KC-390
Com o acidente do C-130 em junho passado uma luz amarela ascendeu no programa de modernização dos Hercules da FAP. Diversas opções começaram a ser estudadas. Uma opção bastante viável seria a compra de um (ou dois!) C-130 usado a partir dos estoques norte-americanos para substituir a perda material. Também o empréstimo/arrendamento de outro tipo de aeronave poderia ser estudado. Um possibilidade final seria a aquisição de uma aeronave totalmente nova.
Se Portugal optasse pela compra de uma aeronave nova a modernização dos C-130 seria enterrada e o processo de aquisição do seu substituto seria adiantado de 2030 para 2017. E foi o que aconteceu.
É óbvio que o fato da OGMA (atualmente uma subsidiária da Embraer, fabricante do KC-390) participar dos trabalhos de projeto e produção da aeronave motivaram o governo português a autorizar o início das negociações para a compra de até cinco KC-390, com opção de mais uma.
Outra tragédia que tem abalado a população portuguesa no momento são os incêndios florestais no país. E muitos apoiadores do KC-390 em Portugal tem ventilado o uso da aeronave nessas missões. A Embraer trabalha na adaptação de um sistema de combate a incêndios muito parecido com o o sistema MAFFS (Modular Airborne Fire-Fighting System) empregado nos C-130.
A FAP empregou o sistema MAFFS em seus C-130 a partir de 1982, mas esse sistema foi descontinuado em 1995 fruto da reorganização de meios de combate a incêndio e, segundo certas fontes, o mesmo estava obsoleto.