‘Mudar ou lapidar?’ – artigo do comandante da Aeronáutica

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F-5M A-1 e A-29 (2)

Artigo assinado pelo comandante da Aeronáutica, tenente brigadeiro do ar Juniti Saito, publicado em 20 de janeiro, aniversário de 73 anos da Força Aérea Brasileira

Brilhante não é uma pedra. É um estilo de lapidação criado há mais de trezentos anos e usado em várias gemas.

Como o estilo é utilizado, principalmente, na lapidação do diamante, o termo é usado impropriamente, mas com frequência, como sinônimo de diamante.

Assim, como toda pedra que requer um bom artífice para deixá-la cada vez mais reluzente, a Força Aérea Brasileira vai percorrendo a sua vida, agregando as experiências do passado, adequando-se aos cenários vivenciados, de maneira a estar cada vez mais radiante no futuro.

Hoje, 20 de janeiro de 2014, a Força Aérea Brasileira completa 73 anos de criação.

Em apenas dois anos vamos comemorar a marca de 75 anos de existência: “Bodas de Brilhante”.

Talvez, para seres humanos, 73 ou 75 anos sejam muito tempo. Todavia, para uma Instituição do Estado, ainda é pouco.

É um período de tempo suficiente para podermos falar de heroísmo, tradições, legado e história. Mas, antes de lembrarmos tudo o que foi feito até hoje, devemos sempre nos recordar de como foi o nascimento da Força Aérea Brasileira: durante a Guerra.

Esta Instituição tem no seu nascedouro a marca de “cumprir a missão”. Personalidades como Eduardo Gomes e Nero Moura precisaram quebrar paradigmas, romper tradições e superar desconfianças para atingirem o único propósito que perseguiam: “cumprir a missão”. Em nome desse simples ideal – transformar um conflito em vitória – esses homens ajudaram não apenas a estruturar a Força Aérea Brasileira, mas a criá-la.

Naquele tempo, nosso desafio era triplo. Precisávamos defender nosso litoral da ameaça dos submarinos hostis, estruturar o então Ministério da Aeronáutica e, numa prova de que a Força existia para valer, organizar um contingente para treinar, se aperfeiçoar e lutar como um esquadrão de combate na Itália.

Arará atacando o U-199 ao largo do Rio de Janeiro - Reprodução pintura de Álvaro Martins

É incrível, passados quase 75 anos, pensar em como uma instituição ainda no seu nascedouro conseguiu ser tão bem sucedida com tantos desafios em tão pouco tempo!

No pós-guerra, a Força Aérea Brasileira já era outra.

Nossas diversas aviações haviam atingido sua plena operacionalidade e era o momento de avaliar quais seriam as missões a cumprir em tempo de paz.

Uma mudança de caráter tão somente nominativo, contudo, merece ser lembrada: foi em 1947 que o então Ministro Armando Figueira Trompowsky de Almeida aprovou uma política de reorganização das nomenclaturas das unidades da FAB.

Podemos imaginar, hoje, quão forte era o espírito de mudança daquela época!

Praça de 1906, O Ministro Trompowsky, cujo nome batiza o campo de aviação onde está a Base Aérea do Galeão, foi formado na gloriosa Marinha do Brasil, tornando-se um homem do azul da Aeronáutica. A mudança foi desde a sua farda até a maneira como deveria encarar o papel da Força que comandava. Sorte da FAB, ao nascer, receber não só aeronaves e bases, mas também homens como o Marechal Trompowsky.

Como Ministro da Aeronáutica, ele percebeu que era o momento de repensar como a FAB ocuparia o território brasileiro. Uma das principais mudanças seria a designação das unidades. O Brasil foi dividido em grupos de aviação de acordo com o critério geográfico.

MUSAL pintura P-47 Thunderbolt aviao FAB

Foi assim que, em março de 1947, o 1° Grupo de Aviação de Caça foi designado 1°/9° Grupo de Aviação, uma decisão que parecia lógica, mas que gerou tantas inquietações que foi revertida em 1949 após tamanha insatisfação.

Se tal desistência de reorganização trouxe um legado, certamente foi a “salada de frutas” do que é a designação das unidades da FAB. Curioso o caso da aviação de asas rotativas, que tem o seu 7°/8° GAv sem a existência do 4° ou do 6° Esquadrão do 8° Grupo de Aviação. Já o 10º Grupo, com seu 1º e 3º Esquadrões componentes da nossa aviação de caça, tem o seu 2º Esquadrão especializado em busca e salvamento.

É, em nome da tradição, que nossas unidades são designadas com uma lógica que só se faz ser vista com uma boa consulta na história. Como se a afetividade fosse maior que a vida real, vamos, assim, nos emaranhando em uma série de pensamentos voltados para o passado.

Como seria se homens como Trompowsky, Eduardo Gomes e Nero Moura tivessem se prendido às tradições e costumes ao invés de terem foco nos desafios que enfrentavam?

Dando um salto na história para a década de 70, temos outro caso notório de inovação que devemos seguir. A chegada dos então Mirage III, à época os caças mais modernos da FAB, não atendeu aos anseios de reequipamento de unidades de caça tradicionais. Alinhou-se, sim, ao pensamento bem desenvolvido de quem imaginou que essas aeronaves deveriam defender o Brasil a partir de outra Base e com uma nova doutrina de emprego.

Jaguares sobre Brasília - Reprodução de pintura de Bryan Withams - 1979

Assim como a velocidade proporcionada pelas hélices e pelas turbinas a jato, a FAB também encara uma realidade em rápida mutação. Aquilo que era imprescindível há poucos anos pode, muito em breve, ser dispensável. Aquilo inimaginável pode ser prioritário em pouquíssimo tempo.

Mas esse dinamismo, essa aceitação de mudança que marcou o início da gloriosa história da Força Aérea Brasileira, parece ter arrefecido com o decorrer dos anos. Não temos dúvidas que somos, com muito orgulho, filhos da Marinha e do Exército brasileiros. Mas, com serenidade e respeito aos nossos pais, temos que buscar as nossas próprias características, evitando nos tornarmos aquele jovem que às vezes insiste em evitar encarar os desafios da vida, continuando “na casa dos pais”.

Ao analisar a localização de nossas unidades, constatamos que nos vemos presos a uma estratégia elaborada na época da Segunda Guerra Mundial. Das dezoito Bases Aéreas hoje ativas, apenas cinco não remontam ao período da criação da Força Aérea Brasileira ou mesmo anteriormente. Brasília, Anápolis, Manaus, Boa Vista e Porto Velho foram frutos de uma política que vê o Brasil como algo bem maior do que o seu litoral, que enxerga a Amazônia como uma riqueza a ser explorada, um torrão estratégico a ser
defendido.

Abrir novas frentes, obviamente, significa redimensionar a Força de acordo com as suas necessidades. Há o exemplar caso do 1°/5° Grupo de Aviação, que acaba de sair da Base Aérea de Fortaleza, “regressando” para a Base Aérea de Natal.

É fato que deixar a bela capital alencarina é uma pena para todos os envolvidos, mas quando analisamos claramente o sentido da mudança percebemos como ela foi importante!

Fortaleza já não é mais a pequena vila onde a Base foi instalada nem a cidade tranquila onde gerações de pilotos de caça foram forjadas. Com um aeroporto internacional movimentado, Fortaleza passou a não ser uma localidade indicada para determinadas fases do curso de formação de pilotos da aviação de transporte: em determinado período era necessário deslocar para outras cidades, como Parnaíba (PI), para garantir a segurança necessária às operações.

O custo envolvido em uma simples operação dessa não é pequeno – sobretudo quando pensamos que estamos falando de uma unidade aérea com dezenas de estagiários por ano!

Além disso, eles também precisam realizar o curso de Tática Aérea em Natal, durante longos três meses, o que agrega ainda mais custos na formação desses aspirantes e jovens tenentes.

Foi nesse cenário que Natal, distante menos de 600 km e com as mesmas vantagens climáticas, apresentou-se como a localidade ideal para voltar a sediar aquela unidade. Com uma infraestrutura ampla, a Base Aérea de Natal brevemente ficará com o total uso das três pistas de pouso daquele campo de aviação, quando o novo aeroporto internacional da capital potiguar for inaugurado.

Retirar o Esquadrão Rumba da Base Aérea de Fortaleza (BAFZ) para Natal foi interpretado por vezes como uma grande lástima, pelos mais diversos motivos, muitos desprovidos de informações precisas. Contudo, quando analisamos claramente os fatores envolvidos, vemos que esta foi uma decisão não apenas lógica, mas tão necessária que até lamentamos não ter sido tomada anteriormente.

O Rumba já ocupa o prédio onde até 2010 estava sediado o Esquadrão Pacau, anteriormente baseado em Fortaleza e agora responsável pela defesa do espaço aéreo na região Norte a partir da Base Aérea de Manaus. Ao lado da ida do Esquadrão Poti para Porto Velho, saído do Recife, esse é um caso que merece nossa atenção.

É fato que o Pacau possuía suas tradições, sua história e sua simpatia pelas cidades de Fortaleza e de Natal. Por mais que haja inevitáveis comentários sobre as condições de operação no Norte – uma natural adaptação à mudança – é difícil encontrar alguém que não concorde que se tratou de uma alteração benéfica para a FAB. Foram necessários quase 70 anos de história para termos um único esquadrão de jatos na Amazônia! Já era hora!

Surpreende, contudo, a reação. A mudança do Rumba para Natal movimentou pouco mais de cem militares de um efetivo de mais de mil que ainda atuam na BAFZ, onde permanece a manutenção dos Bandeirantes. Mas a simples menção à mudança gerou denúncias à imprensa, aos políticos, à entidades de classe. O discurso pessimista, que esconde os fatos e mostra apenas um cenário falsamente terrível, mancha a imagem da instituição sem se basear em nada concreto.

Agora vemos, com surpresa, artigos que anunciam o fechamento de bases aéreas para supostamente fazer economia em nome do projeto F-X2.

Um pequeno conhecimento de administração pública revela como existem rubricas específicas e que a FAB não tem como “guardar” dinheiro de 2014 para gastar em outro ano.

Créditos destinados à vida vegetativa de organizações não “conversam” com o pagamento de nossos maiores projetos, em fase de aquisição. É a pura e simples manipulação das informações baseadas em fontes que se apresentam como pessoas qualificadas, mas só buscam ampliar a desinformação.

Não devemos aceitar algo que “ainda não foi” e que já está atrapalhando o que “ainda pode ser”.

Se em 1947 as mudanças de designação trouxeram resistências, as trocas de unidades, de sedes e de visão trazem muito mais. É também o caso da transferência das aeronaves do 1° GTT dos Afonsos para o Galeão. A despeito das reconhecidas vantagens em se concentrar a frota, em todos os seus aspectos logísticos, operacionais e financeiros,há um entendimento de que a tradição deve estar acima da eficiência da Força. Chega a ser estranho, em nome da tradição, sugerir que nossas maiores aeronaves de transporte operem abaixo da sua capacidade máxima, unicamente, para permanecerem em nosso respeitado sítio histórico.

KC-390 - imagem Embraer

Ao falarmos da aviação de transporte, não podemos deixar de tratar da quase presente aeronave KC-390. O grande diferencial está na sua capacidade. Uma aeronave a jato que haverá de transportar a mesma tonelagem de nossos atuais C-130, com quase o dobro da velocidade.

Isso é transformador, além de ser um rótulo de economia.

Não bastasse a troca de quatro motores por dois, com um expressivo ganho de velocidade e de alcance, a aeronave precisará de menor apoio de solo. Preparando a chegada das aeronaves, em futuro bastante próximo, não poderíamos manter, logicamente, dois esquadrões na mesma cidade, separados por não mais do que 10 milhas.

O lendário Campo dos Afonsos, certamente terá para sempre o seu papel na história da Força Aérea Brasileira. É por isso que sua pista acaba de ser recuperada. É por isso que inúmeras unidades estão ali sediadas, como a nossa UNIFA. É por isso que a maior vitrine histórica da FAB – o MUSAL – está ali.

A história nunca ficará esquecida. Mais que simplesmente vivê-la, cabe à Força Aérea Brasileira ter o mesmo sentimento dos seus pioneiros e não ter medo em mudar para cumprir a sua destinada missão da melhor forma possível.

Mais mudanças devem – e precisam – ocorrer.

Meus prezados comandados:

Em virtude do trabalho que foi e que está sendo executado, temos muito que comemorar. Em dezembro, o anúncio do Gripen NG como nova aeronave de caça da FAB representou um marco para a instituição. Muito em breve, poderemos ter o orgulho de nossa defesa aérea estar a cargo de uma das aeronaves mais modernas do mundo. O seu desenvolvimento, baseado nas versões de sucesso que a antecedem, é uma virtude que se transforma em solução para um país que, mais do que adquirir, quer capacitar-se. Mas não é só: nossas Bases Aéreas já possuem inúmeras aeronaves novas ou modernizadas, como P-3M, A-1M, C-105, H-36 e AH-2, entre outras.

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Mais que uma renovação operacional, temos um imenso orgulho de ver que cada um desses projetos foi pensado de forma a proporcionar uma participação ativa no seu desenvolvimento e produção. Contamos nos dedos a quantidade de países onde seu povo pode bater a mão no peito e se orgulhar de ali mesmo conseguir ter domínio tecnológico sobre as aeronaves que garantem a sua defesa.

Todas as nossas aviações estão em pleno processo de renovação. O futuro já está presente nas nossas Bases Aéreas e se tornará ainda mais marcante quando concretizarmos outros projetos, como o KC-390, o míssil A-Darter, o datalink nacional e, claro, o Gripen NG.

Podemos ter a certeza de que chegaremos bem à marca dos 75 anos de Força Aérea Brasileira. É um momento de avaliar o que conseguimos, o que passou e o que pode ser diferente. Antes de mudar qualquer aspecto na Força Aérea, ou seguir em uma nova direção, estamos ratificando o conhecimento sobre os nossos pontos fortes, para aproveitálos ao máximo. Mas também precisamos ter plena consciência de nossos pontos limitantes e ajustá-los.

Para termos esta nova Força Aérea, nossa preocupação não é mais a de ocupar espaços físicos, ter grande quantidade de organizações espalhadas pelo território nacional e efetivo numeroso com os seus decorrentes custos. Tudo isso é corroborado pela atual ampliação das características de mobilidade e de flexibilidade da Força Aérea.

Fazemos, desde alguns comandos e há vários anos, a supressão daquelas ações que podem ser executadas por outros segmentos da sociedade, e que deixam de figurar em nosso extenso rol de responsabilidades.

Parte considerável da multiplicidade dos trabalhos de manutenção, por exemplo, já é suprida pelo parque industrial brasileiro, reduzindo custos com pessoal e infraestrutura, como ocorre em várias nações do mundo. É assim que se melhora a gestão dos processos, a produtividade das equipes administrativas e logísticas.

Para essa renovação contínua é necessário que confiemos na capacidade dos atuais responsáveis pelos destinos da Força.

Em respeito a nossa história e honrando os seus pioneiros, devemos não manter a FAB exatamente como eles deixaram. Um verdadeiro legado não se faz com paredes ou pedras e, sim, com pensamentos e ideais. Devemos buscar uma Força Aérea moderna, uma Força Aérea que corresponda àquilo que os brasileiros almejam; uma Força Aérea que faça parte do seleto grupo das forças aéreas mais operacionais e profissionais do mundo.

Rumamos para as “Bodas de Brilhante” da Força Aérea Brasileira.

O nosso “diamante” deve continuar sendo lapidado.

Brasília, 20 de janeiro de 2014
73º ano de criação da Aeronáutica Brasileira

Ten. Brig do Ar Juniti Saito
Comandante da Aeronáutica

FONTE: Força Aérea Brasileira (clique no link para acessar o texto em pdf)

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