Ele vai voar? (PARTE I)
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Revelações sobre o programa do F-35
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A revista norte-americana Vanity Fair é conhecida pelas suas reportagens sobre cultura, moda e política, além das mulheres bonitas e pouco vestidas na capa. Porém, na sua edição de setembro o periódico resolveu publicar uma extensa reportagem sobre o programa JSF (Joint Strike Fighter), o caça F-35. O jornalista Adam Ciralsky foi até a Base Aérea de Eglin, (Flórida – EUA), visitou as instalações, viu as aeronaves e conversou com os pilotos. Em Washington, Ciralsky entrevistou o gerente do programa e também obteve muitas informações com uma fonte não revelada. A reportagem abaixo possui algumas informações que já eram do conhecimento geral, mas boa parte do conteúdo é revelador. O site do Poder Aéreo traz com exclusividade a tradução da reportagem, em quatro partes. Boa leitura e boa discussão a todos! (título original – Will it fly?)
O Joint Strike Fighter (JSF) é o sistema de armas mais caro já desenvolvido. Ele é atormentado por falhas de projeto e estouros de orçamento. Só voa com tempo bom. Seus computadores carecem do software necessário para o combate. Ninguém garante quando o avião irá funcionar conforme anunciado. Até recentemente o contratante principal, a Lockheed Martin, estava operando livremente – sendo religiosamente paga pelos seus próprios erros. Olhando para trás, até mesmo o militar que comanda o programa atualmente não acredita como se chegou a este ponto. Em resumo: seguimos adiante!
I. Consciência Situacional
Com quase 500 mil hectares de terreno, a Base Aérea de Eglin não é o pedaço de terreno mais discreto longo da Costa Esmeralda da Flórida. É, no entanto, o lugar mais bem guardado. A base é o lar de laboratórios ultrassecretos de armas, instalações de treinamento das Forças Especiais dos EUA, e a única localidade a leste do Mississippi para voos supersônicos. Mesmo de longe, pode-se ver o tremendo calor que emana do asfalto. No final de maio, eu voei para Fort Walton Beach, um aeródromo civil que compartilha uma pista com Eglin, fato que foi lembrado quando o jato em que eu viajava passou por cima de um cabo de parada, utilizado para reter os rápidos jatos de combate, enquanto taxiam para o terminal.
Com os F-15 e F-16 circulando em cima, eu segui para o portão principal de Eglin, onde fui escoltado pela segurança para a 33ª Ala de Caça da Força Aérea, que é a casa do F-35 Lightning II, também conhecido como o Joint Strike Fighter, e de alguns dos homens que o voam. O Joint Strike Fighter ou JSF é o sistema de armas mais caro da história americana. A ideia por trás dele é substituir quatro modelos distintos de aeronaves da “quarta geração” por uma frota padronizada de aviões de “quinta geração” no estado da arte. Ao longo de sua vida útil, o programa vai custar cerca de US $ 1,5 trilhão.
Andando ao redor do jato supersônico furtivo pela primeira vez, fiquei impressionado com sua beleza física. Quaisquer que sejam seus defeitos – e eles, como os dólares investidos no programa, são quase incontáveis – de perto é uma bela obra de arte da tecnologia. Parafraseando o velho Jimmy Breslin, o F-35 é uma coisa tão brutalizada que você não sabe se ama ou odeia.
Quando o programa JSF formalmente começou, em outubro de 2001, o Departamento de Defesa anunciou planos para comprar 2.852 dos aviões, num contrato de cerca de 233 bilhões dólares. Foi prometido que os primeiros esquadrões de caças de alta tecnologia seriam “capazes de combater” até 2010. O desenvolvimento do avião conta com, pelo menos, sete anos de atraso e é atormentado por uma estratégia arriscada de desenvolvimento, gestão de má qualidade, supervisão do tipo “laissez-faire”, inúmeras falhas de projeto e custos exorbitantes. O Pentágono vai agora gastar 70% mais dinheiro para a compra de 409 caças a menos, e isso é só para comprar e não para voar e mantê-lo, o que ainda será mais caro.
“Você pode entender porque muitas pessoas estão muito, muito céticas sobre o programa”, reconheceu o major-brigadeiro Christopher Bogdan, que tem sido responsável pelo projeto desde dezembro passado. Eu o entrevistei recentemente na Noruega, um dos outros 10 países que comprometeram-se a comprar o caça. “Eu não posso mudar o passado do programa. Eu só posso mudar para onde está caminhado”, disse Bogdan.
A missão da 33ª Ala é hospedar unidades da Força Aérea (USAF), Marinha (USN) e Corpo de Fuzileiros Navais (USMC) responsáveis pela formação dos pilotos que voarão o F-35 e os mecânicos que cuidarão dele no chão. A unidade do USMC, conhecida como “Warlords”, superou as outras: o comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, o general James Amos, declarou que o USMC vai ser a primeira força a colocar em campo um esquadrão de combate de F-35. Em abril de 2013, Amos disse ao Congresso que os fuzileiros navais vão declarar o que os militares chamam de “capacidade operacional inicial”, ou IOC, no verão de 2015 (seis semanas mais tarde, mudou-se a data da IOC para dezembro de 2015). Como comparação, a Força Aérea declarará IOC da sua primeira unidade em dezembro de 2016, enquanto a Marinha estabeleceu a data de fevereiro em 2019.
A declaração de IOC para um sistema de armas é como uma cerimônia de graduação: isso significa que o sistema passou por uma série de testes e está pronto para a guerra. O USMC tem sido muito explícito sobre o significado de tal declaração, dizendo ao Congresso em 31 de maio de 2013, que “a IOC deve ser declarada quando o primeiro esquadrão operacional estiver equipado com 10-16 aeronaves e seus homens treinados e equipados para conduzir apoio aéreo aproximado, operações aéreas ofensivas e defensivas, interdição aérea, apoio aéreo para assaltos e reconhecimento armado em conjunto com os recursos e capacidades do MAGTF (Marine Air Ground Task Force)”.
O comandante do esquadrão “Warlords” em Eglin é um tenente-coronel de 40 anos chamado David Berke, um veterano de combate do Afeganistão e do Iraque. Conforme andávamos ao redor do hangar do Warlords – o que para uma instalação de manutenção é estranhamente limpa, assim como um showroom de automóveis – Berke deixou claro que ele e seus homens estão concentrados em sua missão: formação de pilotos suficientes e mecânicos para cumprir o prazo de 2015. Questionado sobre a imposição de Washington em relação à urgência de colocar a aeronave em operação ao invés do critério desempenho, Berke foi categórico: “Fuzileiros não fazem política. Fale com qualquer um neste esquadrão entre pilotos e mecânicos. Nem um único deles vai mentir para proteger este programa”.
Durante o dia e meio que passei com os Warlords e os seus homólogos da Força Aérea, os “Gorillas”, ficou claro que os homens que voam o F-35 estão entre os melhores pilotos de caça que a América já produziu. Eles são inteligentes, pensativos e qualificados, a proverbial ponta de lança. Mas eu também me perguntei: onde está o resto da lança? Por que, quase duas décadas depois do Pentágono dar o lance inicial do programa (em 1996) eles estão voando uma aeronave cujas desvantagens superam suas capacidades prometidas? A título de comparação, demorou apenas oito anos para o Pentágono projetar, construir, testar, qualificar e implantar um esquadrão totalmente funcional de F-16.
“Comparar o F-16 com o F-35 é como comparar maçãs e laranjas”, disse o Major Matt Johnston, 35 anos, instrutor da Força Aérea em Eglin. “É como comparar um sistema de videogame Atari para a coisa maior e mais recente que a Sony tenha produzido. Ambos são aviões, mas os recursos que o F-35 traz são totalmente revolucionários “. Johnston, como Berke, são categóricos em dizer que os “programáticos” – o funcionamento interno das tecnologias e das políticas do JSF – não são suas preocupações. Há um trabalho a fazer, que é o de treinar os pilotos. Johnston foi sincero, mas não se incomoda com as limitações atuais do F-35. Os esquadrões de Eglin estão proibidos de voar à noite, proibidos de voar em velocidade supersônica, proibidos de voar com mau tempo (o que significa ficar a 25 milhas de uma zona de relâmpagos), proibidos de lançar munição real e proibidos de disparar seus canhões. Depois, há a questão do capacete.
“O capacete é essencial para o F-35”, explicou Johnston. “Essa coisa foi construída com o capacete em mente. Ele fornece 360 graus consciência situacional do espaço de batalha. Fornece os parâmetros de voo: onde estou no espaço? Para onde eu estou apontando? Quão rápido eu vou?” Mas Johnston e Berke estão proibidos de voar com o “distributed aperture system” (sistema de abertura distribuída), uma rede de câmeras entrelaçadas que permite uma visão quase de Raio-X, que deveria ser uma das novidades do avião. O Joint Strike Fighter ainda está à espera de software da Lockheed Martin que tornará efetivas as capacidades longamente prometidas.
Quando falei com o vice-presidente de integração do programa da Lockheed Martin, Steve O’Bryan, ele disse que a empresa está se movendo num ritmo alucinante, acrescentando 200 engenheiros de software e investindo US$ 150 milhões em novas instalações. “Este programa foi excessivamente otimista sobre a complexidade do projeto e a complexidade do software, o que resultou em mais promessas do que resultados concretos”, disse O’Bryan. Ele insistiu que, apesar de um começo difícil, a empresa está dentro do cronograma.
Autoridades do Pentágono não são tão confiantes. Eles não podem dizer quando a empresa vai entregar os 8,6 milhões de linhas de código necessárias para voar um F-35 completamente funcional, para não mencionar as 10 milhões de linhas necessárias para manter o avião. O abismo entre o contratante e o cliente estava em plena exibição em 19 de junho de 2013, quando chefe de ensaios de armas do Pentágono, Michael J. Gilmore, testemunhou perante o Congresso. Ele disse que “menos de 2 %” do software (chamado de “bloco 2B”), que o USMC planeja usar completou os testes, ainda que muito mais esteja em processo de ensaios (a Lockheed Martin insiste que o seu “plano de desenvolvimento de software está no caminho certo”, que a empresa tem “codificado mais de 95% dos 8,6 milhões de linhas de código sobre o F-35”, e que “mais de 86% do código do software está atualmente em ensaios em voo “).
Ainda assim, o ritmo de teste pode ser o de menos. De acordo com Gilmore, o software Bloco 2B que os fuzileiros navais dizem que transformará os seus aviões em aeronaves de combate, na verdade “fornecerá capacidade limitada para realizar o combate.” Gilmore acrescentou também que se o F-35 carregado com software Bloco 2B for realmente usado em combate, “provavelmente seria necessário um apoio significativo a partir de outros sistemas de combate de quarta e quinta geração para combater as ameaças modernas, a menos que a superioridade aérea esteja garantida e que a ameaça seja cooperativa.” Tradução: os F-35 que os fuzileiros navais dizem que podem levar para o combate em 2015 não são apenas mal equipados para o combate, mas provavelmente vão exigir proteção aérea dos aviões que o próprio F-35 pretende substituir.
O software não é a única preocupação. Na Noruega, onde o brigadeiro Bogdan estava se dirigindo à Sociedade Militar de Oslo, ele disse: “Eu tenho uma lista com as 50 peças do avião que quebram com mais frequência do que nós esperamos. E o que eu estou fazendo é investir milhões de dólares em cada uma das partes e decidir se: Precisamos redesenhá-la? Precisamos de outra pessoa para fabricá-la? Ou podemos descobrir uma maneira de repará-la mais rápido e mais breve para que os custos não subam?” Tudo isso ocorre num momento muito avançado do projeto para um avião que o USMC pretende certificar em dois anos.
Em janeiro, o comandante Berke teve uma noção clara do que esta lista de 50 pode trazer de problemas. Um piloto estava taxiando em direção à pista de decolagem e uma luz de advertência acendeu no painel, indicando haver um problema com a pressão do combustível. De volta ao hangar, os mecânicos abriram alguns painéis e descobriram que uma mangueira marrom que leva combustível havia se soltado. Quando perguntei o que teria acontecido caso o defeito não fosse detectado antes da decolagem, Berke respondeu evasivamente: “Eu acho que você pode facilmente inferir que, a partir do fato de que a frota estava “groundeada” (impedida de voar) por seis semanas, não havia dúvida de que o cenário e os resultados não eram aceitáveis para voar”. O que ele quis realmente dizer, Bogdan me explicou mais tarde:” Devemos agradecer por ter identificado (o defeito) ainda no chão. Teria sido um problema. Um problema catastrófico”.
Quando perguntado sobre o incidente, o contratante principal do motor, a Pratt & Whitney, escreveu em um comunicado à Vanity Fair: “O sistema de controle do motor respondeu corretamente quando o vazamento ocorreu. O piloto seguiu os procedimentos operacionais padrão, quando é alertado sobre um vazamento. As salvaguardas em vigor permitiram que o piloto abortasse a decolagem sem incidentes e liberar a pista. Não houve consequências para piloto ou para a tripulação do solo. Para esclarecimento, o ‘groundeamento’ foi suspenso três semanas após o evento”.
Bogdan teria muito mais a dizer no curso de uma longa e contundente entrevista sobre o programa Joint Strike Fighter e a contratante principal, Lockheed Martin, e encontrou deficiências em ambos, em muitos aspectos.
SEGUNDA PARTE DO TEXTO AMANHÃ
Surpreendente a reportagem. No entanto, não deixa de ser uma bela aeronave, e que certamente surpreenderá pelas suas características. O que me chama atenção é que, como todo projeto, ainda há muitos problemas a serem corrigidos, mas que alguns usuários do fórum acabam relevando os problemas de um projeto e crucificando os problemas de outro projeto…
Creio que as duas aeronaves, T-50 e F-35 atingirão status de “marco” na aeronáutica quando entrarem em operação.
No aguardo da próxima! Parabéns ao Poggio pela bela matéria!
Muito boa a reportagem. Demonstra com clareza a diferença de tratamento de um programa aberto e limpo como o JSF com seus concorrentes russo e chineses (se é que se pode chamar disso), dos quais a gente só consegue inferir as coisas lendo nas entrelinhas.
Mas um pouco sensacionalista, aliás, como é a linha dessa revista não especializada.
Vamos aguardar as outras partes.
PS: cabo de mangueira de combustível soltando ao acionamento dos motores é a coisa mais comum do mundo. Pode acontecer com desde um Cesna 152 a um F-22. O importante é que os sensores detectaram a falha.
Como vocês verão. A reportagem não critica o avião em si, nem a importância dele. Mas sim a gestão do programa e a ideia “one size fits all”.
O Adam Ciralsky, autor do artigo, é um jornalista famoso. Ganhador de vários prêmios. Trabalhou no programa “60 minutes” e fez várias reportagens sofre conflitos.
Caro Blackhawk
A edição e tradução do texto (um pouco longo, por sinal) foi trabalho meu e do Nunão também.
Abrs
Nesse caso o parabéns vai para a dupla!
O problema do “one size fists all” é que justamente pela complexidade da tarefa de desenvolver um sistema tão complexo, ambicioso e abrangente. Acredito que no início do programa JSF as autoridades americanas militares e civis encarregadas do controle gerencial do programa considerando a complexidade do objetivo e o até então inquestionável sucesso da Lockheed Martin com os F-16 e F-22 (que depois seria questionado), deu um cheque em branco a empresa para produzir um caça revolucionário dos sonhos… Costumo dizer que o que o F-35 de 5ª geração promete de substituir 4 aeronaves de 4ª geração para as forças… Read more »
Parabéns ao Poder Aéreo por ter trazido este excelente artigo.
Caro Gilberto Rezende
Muito boa a sua análise do programa.
Caro ROTAnaRUA
Hoje a noite, às 00:15h, será publicada a segunda parte (de um total de quatro).
Caro Gilberto, Recebeu um “like” pelo comment. 🙂 Sobre a reportagem: Muito boa, foram honestos em mostrar que o F-35 tem muitos e muitos problemas a serem resolvidos até se tornar um caça verdadeiramente funcional. Mesmo com o “IOC” dos Marines, na prática deverá demorar muito mais. A sensação que fica: LM fez o que quis e o que não quis com o dindin do contribuinte americano no programa F-35. E o pior: Como é um caça para substituir praticamente todos os outros caças, excetuando o F-22 e o F-18E, os americanos não tem para onde correr. E para finalizar… Read more »