T-37C-0878 - foto arquivo Camazano

Relato de Gustavo Adolfo Franco Ferreira (tenente-coronel da reserva da FAB)

vinheta-especialO Cessna T-37 foi chamado, aqui no Brasil, de “bela-garça”. Nome que lhe caiu bem! Na origem, lá nos Estados Unidos, tinha outro apelido: “Cessna’s joke!” Era um avião fácil e dócil, mas era um avião. Diferia muito do T-6, este – possuindo todos os defeitos que um avião pode ter, sempre exagerados – era até capaz de separar os homens dos meninos!

O T-37 tinha uma mania perigosa: se entrasse em parafuso, comandado ou não, e se todo o trem-de-comando não estivesse em  alinhamento e tensão perfeitos, não saía! E se ficasse no parafuso, eu garanto – era apavorante. Aconteceu comigo.

Neste dia – era um início de semana – dávamos instrução de “2P de traslado” para diversos oficiais da AFA (Academia da Força Aérea) servindo nos Afonsos. Era um curso de mentirinha! O painel de rádios, três ou quatro voos, o sistema de oxigênio e de ejeção, dois ou três pousos… Tudo muito simples. Tudo adequado para quem se dispusesse a fazer uma viagem internacional inteira no lado direito de um avião de treinamento militar.

O Ten. Leão (José Araken Leão dos Santos – o Bufão – jatador como eu – leal companheiro) ministrava instrução ao major Remy; eu, ao major Monteiro. O Major Renato Cláudio da Costa Pereira, que viria a ser secretário-geral da ICAO, também voava em umas das áreas altas existentes. A OMis incluía “demonstração de parafusos”. Um para cada lado… e chega!

No hangar do Esquadrão e na linha de voo havia 26 aviões já trazidos. Eu usei o 0882 (foto abaixo)

T-37C-0882-MT - Foto Arquivo Camazano

Fiz um parafuso para a direita. Nenhuma novidade, sem problema. Voltei aos 25000 pés e chutei outro para esquerda. Foi aí que as coisas ficaram pretas! Não havia meio de o avião sair do parafuso; tentei tudo, até pedir ao Monteiro que “cantasse as alturas”; havia a ordem de ejetar a 10000’, se não tivéssemos controle.

Ouvi 18, 17, 16 enquanto “brigava com o avião”. Ouvi: “10 mil, Franco – Vamos sair?” “Mais uma tentativa só…” Durante os segundos em que demorou o tombo eu mantive apertada a tecla da manete, vale dizer, transmitia tudo o que se passava. Foi a sorte!

O 82 saiu do parafuso. Até hoje não sei porque. Monteiro falou: “Deixa comigo!” e tirou o avião do mergulho em que se encontrava. Eu soltei o manche e desmaiei por hiperventilação. Monteiro falou com Renato e aprendeu que devia desligar meu suprimento de oxigênio. Acordei vários minutos depois, já no circuito de pouso… “Pousa esta porra que eu não sei pousar!” Foi a reação do major Monteiro!

Do pátio vimos dois paraquedas caindo além da margem direita do Rio Mogi-Guaçú, muito além dos terrenos da escola. Leão e o Major Remy haviam ejetado! Todos se reuniram no pátio aberto– até Touro Sentado e seu séquito – enquanto o helicóptero ia buscar os paraquedistas. Surpreendentemente, do nada, surgiu a esposa de Touro Sentado. Deu-lhe uma espinafração enorme e sem nenhum sentido porque “… um avião havia caído nos fundos de casa!” A mim me mandaram fazer um relatório.

Na sexta-feira, depois do almoço, ocorria o FEBEAPI . Na entrada, o Azakura (Oficial QAV – Encarregado da manutenção) me entregou o achado da manutenção. Haviam examinado meu avião (o 82) e encontrado os cabos de comando de profundor excessivamente frouxos. Examinaram a frota toda e somente dois aviões tinham a tensão correta nestes cabos. O Leão não podia sair do parafuso! O meu ego foi para as alturas! Touro Sentado abriu o FEBEAPI.

Fez, o Comandante do DPEAER, duas bobagens naquele dia: 1- Disse que ia mandar verificar se o Leão estava na área de instrução para cobrar – ou não – dele, o avião do qual ejetara; e 2- deu-me, a pedido, a palavra.

Aqui cabe, outra vez, um parêntese. Numa destas lamentáveis reuniões semanais anteriores, Touro Sentado havia dado uma ordem cretina e insustentável: quando os T-6, até os T-21, demonstrarem que vão entrar em cavalo-de-pau , em vez de contrariar o movimento, os instrutores deveriam colaborar com a intenção do avião, exatamente como ele, Touro Sentado, fazia quando era instrutor em Stearmans. Opôs-se João Jorge Bertoldo Glaser, aquele mesmo que, em voo, havia trazido ao pouso um T-6 ausente cerca de 10 polegadas de uma das pás de hélice! De nada serviu a objeção. A ordem permaneceu. Na segunda-feira seguinte quebraram-se dez aviões. A instrução aérea parou. São Bartolomeu andou por lá! Fim do parêntese.

T-37C-0872-e-73-vôo-de-grupo - foto arquivo Camazano

Depois que Touro Sentado enunciou a sua decisão de cobrar o avião do Leão, se estivesse voando “nos fundos da casa dele”, no dizer de sua esposa, deu azo à minha contestação. Ele deixou-me falar – Grande erro!.

“Esse Comando não desconhece que o mesmo evento ocorreu comigo, minutos antes de o Ten. Leão ejetar. Está gravado que eu passei dos 10.000 pés durante o tombo sem controle; e que esta é a altura mínima para ejeção, nestes casos. Por óbvio, o DPEAer devia ter perdido dois T-37 naquela hora, não um só! O meu avião, o 0882, foi examinado de ponta-a-ponta e encontraram cabos-de-comando de profundor folgados muito além da tolerância. Não havia como sair do parafuso! A manutenção inspecionou toda a frota quanto a tensão de cabos-de-comando – E TODOS OS CABOS DE PROFUNDOR ESTAVAM FROUXOS! A ficha de inspeção omitiu este passo, causando o acidente do Ten. Leão. Se esse Comando resolver cobrar o avião do qual o Leão ejetou, por dever de lógica e de coerência, vai descarregar o 0882, no mesmo boletim e me dar a propriedade dele. Eu dou o 82 ao Leão, ele paga ao Senhor e ficamos todos quites!”

Levei uma cadeiazinha… Nunca mais se falou no assunto!

FOTOS: Arquivo de Aparecido Camazano Alamino

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Corsario137

Maravilhoso relato. Ficaria dias lendo passagens como essa.
Hoje tive a alegria de almoçar com um grande amigo, coronel da reserva da FAB e que admiro muitíssimo, enfim, foi um festival de boas estórias como sempre.

Ótima matéria!

asbueno

Nunão, parabéns pela iniciativa de tornar o comentário um post e parabéns ao Franco pela perícia e coragem e pela capacidade de transmitir-nos o evento da forma como foi feita!

Observador

Eu humildemente reconheço:

Se estivesse no lugar do major Monteiro, que entrou no curso de mentirinha e acabou tendo que pilotar um avião com problemas e com o piloto desmaiado ao lado, teria me borrado TODO.

Vader

Como sempre, o Coronel nos relatando mais uma de suas passagens épicas.

Conto simplesmente delicioso! Parabéns.

PS: daria tudo para saber quem era o “Touro Sentado”, rsrsrsrs…

glaison

Perdi a ultima parte.
Por que ele levou cadeia?

sergiocintra

Franco Ferreira

No meu tempo de “azulão”, em varias ocasiões assisti os instrutores, ao decolar, simplismente não decolavam, sómente recolhiam o trem, depois, muito depois, cabravam (não lembro o nome da manobra!). Ficou um questionamento até hoje o T-37 indicava – tinha indicativo no painel – do ponto de sustentação, ou era por “feeling”?

Franco Ferreira

sergiocintra disse: 17 de maio de 2013 às 9:53 Sérgio – A sequência de decolagem sempre foi: 1- Sai do chão; 2- Cede a mão; 3- freia a roda; 4- redução. As rodas não devem ser recolhidas com rotação. Por isto, talvez, vistos à distância, parecia que o trem havia sido recolhido enquanto ainda estava em contato com solo; não estava. A “marra” dos aviadores era apartar a roda do chão o mínimo possível – talvez uma ou duas polegadas – segurar o avião ali e, depois que tivesse atingido a velocidade de subida, recolher o trem, como se ainda… Read more »

Franco Ferreira

sergiocintra disse:
17 de maio de 2013 às 9:53

Desculpe – Esqueci! Não há indicação por instrumentos para o despregar da aeronave. É sentido nos fundilhos.

Marcelo Andrade

Oi Alexandre e Poggio,

Poderiam regularizar o meu acesso ao Blog Forças Terrestres. Já estou com acesso ao Aéreo e ao Naval, obrigado!!!

Ivan

Franco Ferreira,

Excelente história.

Já pensou em escrever um livro de ‘causos’ verídicos da aviação nacional? Talvez reunindo mais alguns antigos amigos de azul.

Sds.,
Ivan.

sergiocintra

Valeu Franco! Mais uma aula, e como v. mencionou, nos fundilhos. Foi-se o meu “feeling”. Presenciei seus iguais fazendo alem do t-37, c/ o At-33 e o At-26. Agora realmente à distancia 2 polegadas não se percebe, Outro ensino, qdo, se escamoteia o trem pensava que a freagem era “tomática”. Parabens! Grato! e Abraços! Só quem viveu lá, sabe como a vontade do comandante, muitas vezes idiota, faz com que absurdos sejam cometidos. Caí fora por conta disso, com o saudoso Brig. Délio comandando a 4a.”Zona Aérea” – esse era sábio, pena que político – me aconselhando a novos caminhos.… Read more »

joubertfreire

Me aguçou…Quem é o Touro Sentado, rsss.

Paulo Ricardo Colaço

Excelente relato!!
Sou filho de Oficial da FAB, já falecido, que foi buscar os T-37 nos EUA e depois ficou como instrutor na AFA, nos idos de 65 a 68.
Lembro de meu pai contando da questão do parafuso nos T-37!

Ivan

Eu vi esse acidente do T-37 0879, com o Ten Leão. Meu pai, Capitão na época, servia no Destacamento Precursor da Academia da Força Aérea e trouxe esse avião de Wichita, nos EUA, no ano anterior. A esquadrilha dele foi a 2ª ou 3ª a fazer o translado dos T-37 para o Brasil. Eu tinha 8 anos na época e estava brincando na piscina da vila dos oficiais de Pirassununga quando minha mãe olhou para o céu, que estava claro e azul no dia, e disse algo como “Olha que lindo, um avião soltando paraquedas”. Quando olhei vi de fato… Read more »