Lobby contra Embraer deixa afegãos sem aviões de guerra

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Nathan Hodge (Shindand, Afeganistão)

A Base Aérea de Shindand, no Afeganistão, tem uma pista de quase 2.500 metros, um quartel-general novinho em folha e uma motivada turma de candidatos afegãos a piloto.

Mas, devido ao modo como Washington opera, o complexo não tem aviões de guerra.

A nascente força aérea afegã devia ter recebido US$ 355 milhões em aeronaves feitas sob medida para combate à guerrilha, e isso bem antes da retirada dos Estados Unidos, marcada para 2014. Equipados com metralhadoras, mísseis e bombas, são aviões de turboélice robustos, confiáveis — e mais baratos de operar e simples de manter do que caças.

Mas os afegãos não vão receber os aviões no prazo. A princípio, a Força Aérea americana tinha entregue o contrato a uma empresa dos EUA que forneceria aviões projetados no Brasil. Mas cancelou o contrato depois de um fabricante de aviões do Estado americano de Kansas ter movido uma ação para anulá-lo — e de a Força Aérea ter decidido que o contrato tinha documentação insuficiente. Além disso, a bancada de Kansas no Congresso fez um lobby pesado contra o avião brasileiro. A Força Aérea reiniciou o processo de licitação. Dificilmente um novo contrato será celebrado antes do ano que vem.

Também é difícil que o Afeganistão tenha uma Força Aérea independente, plenamente operacional, antes de 2016 ou 2017 — dois ou três anos depois da retirada dos EUA, disse o general-brigadeiro da Força Aérea americana Timothy Ray, que lidera o comando de treinamento aéreo da Otan no Afeganistão.

“Eles perderam o bem mais precioso que há no combate, que é o tempo”, diz Edward Timperlake, militar hoje reformado que foi piloto de caça do corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e diretor de avaliação de tecnologia no Pentágono até 2009.

O novo problema vem se somar a outra polêmica, a de aviões de carga C-27A entregues ao Afeganistão pelos EUA. A frota, avaliada em US$ 275 milhões, está em solo há meses devido à falta de manutenção e peças de reposição, informação relatada em primeira mão pelo The Wall Street Journal.

Em uma reunião com o presidente Hamid Karzai e autoridades de segurança no fim de maio, as Forças Armadas afegãs expressaram “inquietação” com o ritmo lento da recuperação da Força Aérea do país e pediram conversas urgentes com EUA e seus aliados para discutir a questão, de acordo com uma declaração do gabinete da presidência.

A obtenção desses aviões de ataque “é muito importante para nós, para o apoio à infantaria, ao exército em solo”, disse o tenente-general afegão Mohammad Dawran, chefe do estado-maior da aeronáutica afegã, ao WSJ. “Precisamos desesperadamente intensificar a capacidade de nossa Força Aérea”.

Uma presença forte nos céus é essencial para o policiamento do Afeganistão, um país montanhoso de relevo acidentado, clima inclemente e poucas estradas. Acontecimentos recentes salientaram a importância dessa força para sufocar a insurgência. Quando o Talebã organizou ataques em Cabul e no resto do país em abril, as forças de segurança afegãs só conseguiram conter a insurgência graças ao apoio aéreo dos EUA.

Os ocupantes anteriores do país sabiam muito bem disso: quando saíram dali, em 1989, os soviéticos deixaram aos afegãos mais de 400 aviões militares, incluindo mais de 200 caças de fabricação soviética. Vestígios dessa extinta Força Aérea — aviões supersônicos Su-22 enferrujados, helicópteros pesados Mi-6 varados por balas — hoje entulham o cemitério de aviões de Shindand, localidade próxima da fronteira iraniana que é o centro da Força Aérea afegã.

O major-general Mohammad Baqi, oficial mais graduado da Força Aérea afegã em Shindand, gosta de levar jovens recrutas ao lugar para uma aula de história. O ferro-velho, diz, é um lembrete “da Força Aérea forte que tivemos” antes de a base ter sido dilapidada pela guerra civil no país — e antes de a pista ter sido bombardeada pelos americanos durante a campanha de 2001 para derrubar o Talebã.

“Não queremos que nossa nova Força Aérea tenha o mesmo destino da última”, diz.

Hoje, do outro lado dessa montanha de sucata, centenas de operários da construção civil usando capacetes e coletes refletivos dão os últimos retoques em um quartel-general para a Força Aérea afegã. Áreas para estacionamento de aeronaves recebem novas camadas de concreto, dormitórios para recrutas são pintados de amarelo-canário e imensos hangares com tetos curvos são erguidos nas instalações.

John Hokaj, coronel da Força Aérea dos EUA e até recentemente comandante do grupo consultivo que ajuda a supervisionar a formação de pilotos afegãos, mandou afixar cartazes na frente do canteiro de obras com as palavras “sede da Força Aérea afegã”, um gesto de reconhecimento da soberania do Afeganistão.

Ao todo, os EUA gastaram quase US$ 300 milhões na modernização das instalações de Shindand. A base tem uma frota totalmente nova de pequenas aeronaves de asa fixa: seis Cessna C-182T de treinamento e 12 Cessna C-208B para transporte de curta distância. Pintados de cinza militar, os dois modelos turboélice ostentam a insígnia da Força Aérea afegã.

Ali, jovens pilotos de helicóptero voam com o MD-530F, um helicóptero de treinamento de alta performance fabricado pela americana MD Helicopters Inc., do Arizona. A certa altura, passam para outro aparelho, o Mi-17. De fabricação russa, é um helicóptero robusto de transporte.

Segundo o general Baqi, o programa de treinamento de Shindand vai formar uma leva nova de pilotos competentes dentro do cronograma previsto. O problema é que esses pilotos não terão aeronaves para missões de apoio aéreo uma vez que o treinamento tenha sido concluído.

“Temos uma unidade de comando aqui, temos uma guarnição da polícia, temos uma força policial distrital, e sempre que precisam de apoio aéreo nos pedem e dizemos: ‘Ah, essa é uma unidade de treinamento, não damos nenhum apoio aéreo'”, lamentou o general afegão.

A Força Aérea americana já deveria estar remediando essa situação. No auge da guerra do Iraque, como o conflito no Afeganistão fermentando, os americanos começaram a estudar opções de aeronaves de “contrainsurgência” — aviões leves equipados com sensores e armamentos para permitir um apoio aéreo de custo relativamente baixo. Uma das opções mais conhecidas no mercado era brasileira: o Super Tucano, avião de ataque empregado pelas forças armadas do Brasil, da República Dominicana e da Colômbia — onde é usado em missões de contrainsurgência e combate ao narcotráfico semelhantes às exigidas pelo Afeganistão.

Uma empresa americana, a Sierra Nevada Corp., do Estado de Nevada, uniu-se à Embraer SA, de São José do Rio Preto, SP, em 2010 para oferecer o Super Tucano à Força Aérea dos EUA. Uma rival nos EUA, a Hawker Beechcraft Corp., do Kansas, ofereceu o AT-6, uma versão modificada de um avião que militares americanos hoje empregam no treinamento básico de pilotos da Força Aérea e da Marinha.

Em 2009, dois integrantes da bancada do Kansas no Congresso, o senador Sam Brownback e o deputado Todd Tiahrt, enviaram uma carta ao então secretário de Defesa, Robert Gates, manifestando “forte e inequívoca objeção” a qualquer possível acordo entre EUA e Brasil para a aquisição, pelo Pentágono, de Super Tucanos como aviões leves de ataque.

Meses mais tarde, Stanley McChrystal, general do exército americano e, então, o principal comandante no Afeganistão, enviou um pedido urgente ao chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas americanas para a compra de quatro Super Tucanos para reforçar o apoio aéreo a tropas de operações especiais no Afeganistão.

O projeto empacou depois de parlamentares terem bloqueado um pedido de US$ 44 milhões em verbas. A bancada do Kansas no Congresso americano teve um papel importante nesse bloqueio, disse Tiahrt, que deixou o Congresso no ano passado depois de perder as primárias do seu Partido Republicano no Estado para o Senado.

Segundo o ex-parlamentar do Kansas, seu medo era que o acordo desse vantagem à Embraer em licitações futuras do Pentágono para a compra de aviões de ataque leves. Tiahrt, que já prestou serviços de consultoria à Hawker Beechcraft e a outras empresas americanas de aviação desde que deixou o Congresso, acrescentou que ele e outros parlamentares “queria dar ao trabalhador americano a chance de competir pelas verbas do governo”. O ex-senador Brownback, que hoje é governador do Kansas, não quis se pronunciar.

Apesar do lobby, em novembro de 2011 a Força Aérea dos EUA excluiu os aviões AT-6 da Hawker Beechcraft da disputa pelo contrato para fornecer aviões de guerra ao Afeganistão, dando a vitória da licitação, na prática, para o consórcio EUA–Brasil.

Em resposta, a Hawker Beechcraft apresentou uma queixa ao órgão de controle e auditoria do governo federal nos EUA, o Government Accountability Office. O GAO rejeitou a queixa em dezembro. Segundo o órgão, a Força Aérea detectou “deficiências importantes” na proposta da Hawker Beechcraft, que tornaram sua oferta arriscada demais. A Força Aérea, alegando o segredo do processo licitatório e a ação na Justiça, não deu uma explicação detalhada sobre a decisão. Mas defensores do avião da Embraer chamam a atenção para uma distinção fundamental entre as duas aeronaves: o Super Tucano é um avião atualmente utilizado por várias forças armadas; já o AT-6 é uma versão alterada de um avião de treinamento que nunca foi testado como aeronave de combate. Críticos retrucam que o Super Tucano é a alternativa de maior risco, pois o AT-6 é baseado em um avião que já é usado pelas Forças Armadas americanas, e conta com uma base de treinamento e suprimento de peças.

Em dezembro último, a Força Aérea dos EUA entregou um contrato no valor de US$ 355 milhões para 20 Super Tucanos para a equipe da Sierra Nevada/Embraer. Foi a deixa para a Hawker Beechcraft mover uma ação no Tribunal de Ações Federais dos EUA para impedir o avanço do contrato. Na ação, a Hawker alegou ter sido indevidamente excluída da licitação. “Foi um processo falho”, disse Bill Boisture, presidente do conselho da Hawker e cabeça da subsidiária Hawker Beechcraft Defense Co.

No final de fevereiro, a Força Aérea americana resolveu cancelar o contrato para a compra dos Super Tucanos, alegando que os oficiais responsáveis pela compra “não estavam satisfeitos com a documentação” apresentada na rodada inicial da licitação.

Na sequência, a Sierra Nevada moveu uma ação contra a Força Aérea para restabelecer o contrato de dezembro. “Acreditamos, sim, ter vencido nos méritos técnicos, e acreditamos ter a única solução do mercado”, disse Taco Gilbert, vice-presidente de desenvolvimento de negócios da Sierra Nevada para o mercado de inteligência, monitoramento e reconhecimento.

O chefe do Estado-Maior da Força Aérea, general Norton Schwartz, disse que o cancelamento do contrato original “foi profundamente decepcionante”. “Sabemos que nossos parceiros afegãos precisam desse recurso e reiniciamos [o processo de] aquisição o mais rápido que pudemos”, disse em comunicado.

Tanto para a Embraer como para a Hawker, há muito em jogo na disputa por esse contrato. Para a Embraer, a vitória seria um jeito de entrar no mercado de defesa americano, o maior do mundo. Para a Hawker Beechcraft, que pediu concordata no começo de maio, quando a licitação já fora reaberta, um contrato manteria linhas de produção operando.

Em uma nova reviravolta, a empresa há pouco anunciou que estava negociando com uma empresa chinesa, a Superior Aviation Beijing Co., a venda do grosso de seus ativos. A Hawker disse, no entanto, que uma possível transação com a Superior não incluiria a divisão de aeronaves militares.

FONTE: The Wall Street Journal

FOTOS: R.F. Santana

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