F-35 noturno 1

O texto abaixo foi publicado na edição de setembro da revista norte-americana Vanity Fair. O site do Poder Aéreo traz com exclusividade a tradução da reportagem, em quatro partes. Para ler a primeira parte   clique aqui.

II. “Prática ruim de aquisição”

A Union Station de Washington, cuja arquitetura lembra, em parte, as Termas de Diocleciano, é uma entrada apropriada para uma cidade que continua a gastar com os militares como o império abandonado. No início deste ano eu estava aguardando um telefonema no meio de multidões de viajantes como eu. Assim que recebi a ligação, fui informado para seguir para o piso superior do Café Central, que ocupa uma plataforma circular com uma visão de 360 graus do lobby abaixo. O homem que eu estava por conhecer – chamarei de “Charlie” – é uma fonte bem posicionada com uma década de experiência no programa Joint Strike Fighter, dentro e fora do Pentágono.

Charlie explicou que a escolha de local de reunião foi menos paranóica do que prática: o programa JSF é tão grande, financeiramente e geograficamente – e saturado com tantos lobistas, executivos, assessores do Congresso, burocratas do Pentágono e funcionários designados – que é preciso um esforço considerável em Washington para evitar esbarrar em alguém ligado ao programa. E ele não queria esbarrar em ninguém. Charlie pediu que eu escondesse sua identidade para que ele pudesse falar abertamente.

No decorrer desta e de muitas outras conversas, Charlie passou pela conturbada história do avião e tentou separar os rosados pronunciamentos de relações públicas do que ele via como a dura realidade.

“O jato deveria estar totalmente operacional no momento e é por isso que eles colocaram pessoas em Eglin em 2010/2011, e eles esperavam um jato totalmente funcional em 2012”, disse ele. “Mas a única missão militar que esses aviões podem executar é uma missão Kamikaze. Eles não podem lançar uma única bomba real em um alvo, não podem engajar aeronaves de combate. Há limitações no voo por instrumentos (IFR – Instrument Flight Rules), o que é necessário para se voar um avião com mau tempo ou à noite. Qualquer licença de piloto na aviação civil diz que ele pode decolar e pousar com um clima perfeito. Então eles fazem o curso de instrumento, posteriormente. O que o programa está dizendo é que o JSF, o maior e mais recente caça dos EUA, está impedido de voar em condições meteorológicas por instrumentos, algo que um Cessna que custa 60 mil dólares pode fazer”.

F-35A taxiamento para voo noturno - foto USAF
Há limitações no voo por instrumentos. (…) O que o programa está dizendo é que o JSF, o maior e mais recente caça dos EUA, está impedido de voar em condições meteorológicas por instrumentos, algo que um Cessna que custa 60 mil dólares pode fazer”. FOTO: USAF

Charlie citou uma reportagem sobre Frank Kendall, subsecretário de Defesa do Pentágono para aquisição, que em 2012 tinha usado as palavras “prática ruim de aquisição” para descrever o processo de projeto e produção do Joint Strike Fighter. (Em junho de 2013, Kendall soou mais otimista durante uma teleconferência comigo e com outros jornalistas: “Eu acho que todos nós estamos encorajados pelo progresso que estamos vendo. É muito cedo para declarar vitória. Temos um monte de trabalho a fazer. Mas este programa está em bases muito mais sólidas, mais estáveis do que era há um ou dois anos”).

Sem se incomodar com a mudança de tom de Kendall, Charlie insiste que os problemas técnicos continuarão a atormentar o programa. “Você pode dizer que a raiz dos problemas do avião hoje está no período 2006-2007”, explicou. “O programa estava em um ponto crítico e a Lockheed precisava provar que poderia atender às exigências quanto ao peso da aeronave.” Isso, diz ele, levou a uma série de decisões de risco no projeto. “Eu posso te dizer, não havia nada que eles não fizessem para passar pelas revisões. Eles cortaram arestas. E por isso estamos onde estamos”.

Apesar de reconhecer que o peso era uma questão premente, o porta-voz da Lockheed Martin, Michael Rein, disse-me que os projetos de revisão em 2006 e 2007 foram feitos em conjunto com funcionários do Pentágono e com a bênção deles. Ele negou veementemente as arestas cortadas ou de alguma forma o comprometimento da segurança ou de seus valores fundamentais.

III. Gestão sem por a mão

Em 26 de outubro de 2001, o Pentágono anunciou que havia escolhido a Lockheed Martin no lugar da Boeing para construir o que a Lockheed prometeu que seria “o caça de ataque mais formidável já operado”. O que o Pentágono exigia era muito: construir um caça-bombardeiro de próxima geração que poderia ser usado não só pelos militares dos EUA, mas também por nações aliadas (que viria a incluir o Reino Unido, Itália, Holanda, Turquia, Canadá, Austrália, Dinamarca, Noruega, Japão e Israel).

Em cima disso, deveriam ser produzidas três versões do avião – a versão convencional para a Força Aérea, uma versão de decolagem curta e pouso vertical para os Fuzileiros Navais, e uma versão embarcada para a Marinha. A ideia era que um único avião multitarefa, furtivo e supersônico poderia substituir totalmente quatro tipos existentes de aeronaves. A expectativa era de que esse novo avião faria tudo: combate ar-ar, bombardeio em profundidade e apoio aéreo aproximado.

Boeing_X32A FOTO Boeing
Na verdade, não era exatamente uma competição. O X-32 da Boeing, produto do trabalho de apenas quatro anos, empalideceu ao lado do Lockheed X-35, que vinha sendo desenvolvido de uma forma ou de outra desde meados da década de 1980 graças a incontáveis milhões em fundos de orçamentos secretos. FOTO: Boeing

A Lockheed Martin ganhou o contrato no valor de mais de US$ 200 bilhões, depois do que ficou conhecido como a “Batalha dos aviões-X”. Na verdade, não era exatamente uma competição. O X-32 da Boeing, produto do trabalho de apenas quatro anos, empalideceu ao lado do Lockheed X-35, que vinha sendo desenvolvido de uma forma ou de outra desde meados da década de 1980 graças a incontáveis milhões em fundos de orçamentos secretos que a empresa havia recebido da Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA) para desenvolver uma aeronave supersônica de decolagem curta e pouso vertical.

Para transformar o protótipo do X-35 numa frota de caças F-35, a Lockheed Martin baseou-se em duas práticas de aquisição aparentemente distintas, mas igualmente controversas. No jargão militar, estas são conhecidas como “comunalidade” e “simultaneidade”.

Comunalidade significa simplesmente que as três variantes do F-35 compartilham partes e componentes de alto custo, como a estrutura, os aviônicos e os motores. Supunha-se que isto ajudaria a garantir uma aeronave “acessível”, um termo que a empresa e os gestores do Departamento de Defesa invocam com a frequência de um canto Vajrayana. Mas a semelhança realmente não aconteceu.

O plano original era de que aproximadamente 70% de todas as partes dos aviões fossem de uso comum, e o número real de hoje é de cerca de 25%. Comunalidade, mesmo neste nível reduzido, tem consequências inesperadas. Quando uma trinca em uma lâmina de turbina de baixa pressão foi descoberta num motor de F-35A no início deste ano, funcionários do Pentágono tomaram a única atitude responsável, uma vez que a peça é usada em todos os modelos: “groundear” (impedir de voar) toda a frota de F -35, e não apenas os que voavam pela Força Aérea. Em seu depoimento em junho, Gilmore revelou outro evento menos conhecido, quando toda a frota de F-35 foi “groundeada” em março de 2013 após a descoberta de “desgaste excessivo da dobradiça do leme”.

JSF Family
O plano original era de que aproximadamente 70% de todas as partes dos aviões fossem de uso comum, e o número real de hoje é de cerca de 25%.

Desde o início, a Lockheed Martin convenceu os funcionários do Pentágono de que a inovação tecnológica, incluindo a forte dependência de simulação por computador, poderia tomar o lugar dos testes do mundo real, mantendo assim os custos baixos. O Pentágono comprou essas garantias e permitiu que a empresa projetasse, testasse e produzisse o F-35, tudo ao mesmo tempo, em vez de insistir que ela identificasse e corrigisse defeitos antes de dar início à sua linha de produção. Construir um avião, enquanto ele ainda está sendo desenvolvido e testado é conhecido como a simultaneidade. Com efeito, a simultaneidade cria um caro e frustrante ciclo de não decisão: construir um avião, pilotar um avião, encontrar uma falha, projetar uma correção, adicionar as correções às aeronaves produzidas, repetir o processo.

O vice-almirante David Venlet, que gerenciou o programa JSF até o final do ano passado, reconheceu o absurdo em uma entrevista para a AOL Defesa: “Você gostaria de ter as chaves do seu novo e brilhante jato de combate e entregá-lo à frota com toda a capacidade e toda a vida de serviço que eles querem. O que estamos fazendo é levar as chaves do novo jato brilhante, entregando-o à frota, e dizendo: ‘dê-me aquele jato de volta no primeiro ano. Eu tenho que levá-lo até o parque de material por um par de meses, abri-lo e adicionar algumas modificações estruturais, porque se eu não fizer isso, não conseguiremos voar por dois, três, quatro, cinco anos’. Isso é o que a simultaneidade está fazendo conosco”.

A esse problema se soma a política de “gestão sem por as mãos” do Pentágono, uma cria da desregulamentação promovida nos anos de 1990. Na época em que o contrato do F-35 foi escrito, o Pentágono estava operando sob um princípio chamado de Responsabilidade Total do Desempenho do Sistema. A ideia era que a supervisão do governo era demasiadamente morosa e cara. A solução foi colocar mais poder nas mãos das empresas. No caso do Joint Strike Fighter, a Lockheed Martin recebeu responsabilidade quase total para o projeto, desenvolvimento, testes, introdução e produção. Nos velhos tempos, o Pentágono teria fornecido milhares de páginas de especificações. Para o Joint Strike Fighter, o Pentágono deu à Lockheed um pote de dinheiro e um esboço geral do que era esperado.

Economists for Peace and Security
“O verdadeiro custo do avião, quando você deixar de lado todas as besteiras, é 219 milhões dólares ou mais por aeronave, e esse número tende a subir”. Wheeler; FOTO: Economists for Peace and Security

Buscar o custo real do Joint Strike Fighter é um exercício enlouquecedor, pois são empregados vários métodos de cálculo, juntamente com acronismos bizantinos, que desembocam em números que servem a determinados interesses. De acordo com o Government Accountability Office (GAO), que é relativamente independente, o preço de cada F-35 deveria ser de 81 milhões de dólares quando o programa começou em outubro de 2001. Desde aquela época, o preço por avião basicamente dobrou, chegando a 161 milhões dólares. A produção em larga escala do F-35, que deveria começar em 2012, não ocorrerá antes de 2019.

O Escritório Conjunto do Programa, que supervisiona o projeto, discorda da avaliação do GAO, argumentando que ele não divide o F-35 por variante e não leva em conta o que eles afirmam ser uma “curva de aprendizagem” (learning curve) que levaria os preços para baixo ao longo do tempo. Dizem que um número mais realista é de 120 milhões dólares em média por exemplar, em cada um dos lotes de produção. Os críticos, como Winslow Wheeler, do Projeto de Supervisão do Governo e funcionário do GAO de longa data, argumentam o contrário: “O verdadeiro custo do avião, quando você deixar de lado todas as besteiras, é 219 milhões dólares ou mais por aeronave, e esse número tende a subir”.

TERCEIRA PARTE DO TEXTO AMANHÃ

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