Falando em ensaio de estol, um emocionante voo no EMB 121 Xingu
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Parte 1 – Como um ensaio de estol no EMB 121 Xingu, para homologar uma configuração de exportação, deu vontade de estar numa cadeira de ejeção
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A narrativa nos foi enviada por um leitor, inspirado a contá-la após ler a história do “Parafuso sem controle” do tenente-coronel da reserva da FAB Gustavo Adolfo Franco Ferreira. Agradecemos ao leitor, que pediu para ser identificado apenas como “ProvaX”, por compartilhar conosco a experiência. Boa leitura a todos!
Como Piloto de Prova do CTA eu tinha, como uma das missões, realizar voos de ensaio na Embraer para homologar as aeronaves produzidas pela empresa e seus sistemas embarcados.
Uma vez fui chamado para realizar um ensaio de estol no Emb-121 Xingu. Esse ensaio era particularmente interessante, pois como o Xingu tinha cauda em “T”, havia o alto risco de a aeronave entrar em “estol profundo” (deep stall).
O “estol profundo” foi descoberto pela primeira vez num acidente ocorrido durante os ensaios em voo da aeronave inglesa BAC111. No estol de uma aeronave com cauda em “T”, existe uma grande probabilidade de o fluxo de ar turbilhonado das asas incidir diretamente sobre toda a área do profundor. Assim, para a recuperação do estol o piloto fica sem comando de profundor. O piloto pode acionar o manche como quiser, e a aeronave simplesmente não dá nenhuma resposta, pois o profundor está estolado também. Desse modo, a aeronave prossegue na atitude de estol até o impacto com o solo, exatamente o que veio a ocorrer no ensaio do BAC111, matando todos os tripulantes.
Com a experiência do acidente com o BAC111, a partir daí todas as aeronaves com cauda em “T” passaram a usar um dispositivo artificial para avisar o piloto da aproximação do estol. Assim, antes que a aeronave entre realmente em estol, o dispositivo (“stick shaker”, um pequeno motor que é instalado na base do manche da aeronave e que ao ser acionado o faz vibrar) é acionado e faz tremer o manche, dando a impressão ao piloto que a aeronave está estolando.
No momento em que recebe o aviso do “stick shaker”, o piloto deve proceder à recuperação da aeronave, colocando o manche à frente, diminuindo o ângulo de ataque e voltando à condição normal de vôo. Caso o piloto não faça a manobra de recuperação e prossiga aumentando o ângulo de ataque, se aproximando do ângulo real de estol e consequentemente se aproximando do “deep stall”, um segundo dispositivo, o “stick pusher” é acionado e o manche é hidraulicamente empurrado para frente, independentemente da ação do piloto.
Naturalmente, para o piloto operacional isso tudo é transparente, e os sistemas são acionados automaticamente. Cabe ao Piloto de Prova definir na prática qual o ângulo de ataque que será ajustado para acionar cada dispositivo, dando segurança à operação da aeronave. Não podemos esquecer que, quanto mais elevado o ângulo de ataque que for definido para ser usado artificialmente como estol, maior o envelope de voo da aeronave, podendo decolar em pistas mais curtas ou maiores pesos de decolagem. Ao mesmo tempo, quanto maior esse ângulo, mais próximo estaremos de entrar num “deep stall” e provocarmos uma condição irremediável de acidente.
Trata-se do eterno conflito entre segurança e desempenho, que deve ser definido pela equipe de ensaios em voo. Para se definir esses parâmetros, são realizados vários ensaios de estol até que seja encontrada uma situação ótima, onde o desempenho seja otimizado sem afetar a segurança do voo.
Para efetuar esses ensaios, que como vemos têm um alto grau de risco de acidente, o Xingu era equipado com um “paracaudas”. Assim, caso a aeronave entrasse num “deep stal”, o piloto acionaria o paracaudas para tirá-la do estol e, depois que a situação estivesse controlada, ejetaria o paracaudas para prosseguir no voo. Além disso, a tripulação, que era composta basicamente pelo piloto de prova e pelo engenheiro de ensaios, usava paraquedas, capacete, e era instalado no Xingu um dispositivo que ao ser acionado puxava a cadeira do piloto para trás, facilitando a sua saída e ao mesmo tempo ejetava a porta.
Para chegar até a porta, imaginando-se que a aeronave estaria em parafuso, era colocada uma rede em forma de tubo entre a cadeira do piloto e a porta, de modo que o piloto poderia ir se segurando até alcançar a porta para saltar. Um sistema bem bolado, mas que naturalmente ninguém estava disposto a ter que usar num ensaio real.
Voltando ao ensaio no Xingu. A aeronave já estava homologada. Os ensaios para determinar os ângulos de calibragem do “stick shaker” e “stick pusher” já tinham sido feitos. Todavia, para aumentar o desempenho da aeronave numa determinada configuração que seria exportada para os Estados Unidos, havia a intenção de se aumentar esse ângulo de ataque, e para tanto um novo ensaio de calibração foi feito. O piloto de prova da Embraer (muito competente por sinal), fez os ensaios e então o ensaio de qualificação foi pedido ao CTA. Aí entrei eu.. para qualificar o ensaio que a Embraer havia feito.
Fizemos o briefing do ensaio, fomos para a aeronave, de paraquedas e capacete, e decolamos para o ensaio. Subimos bastante, para poder ter altitude de segurança para um eventual parafuso não intencional (aliás, nunca faríamos um parafuso intencional numa aeronave executiva bimotor, como o Xingu).
Ao chegarmos à altitude de ensaio, o piloto da Embraer passou então a realizar a demonstração do estol.
O estol numa aeronave como o Xingu deve seguir as normas de homologação que são internacionalmente padronizadas. Numa dada configuração de flape, trem de pouso e potência do motor, o piloto leva a aeronave a uma atitude cabrada de modo a reduzir a velocidade lenta e gradativamente até o estol, que deve ser caracterizado por uma queda incontrolável do nariz, mantendo porém o controle lateral positivo. Ou seja, não pode haver queda de asas. O manche deve ser puxado de modo constante até o estol, não sendo válido o procedimento quando o piloto faz qualquer movimento de oscilação no manche para frente e para trás. A força no manche deve ir aumentando gradativamente até o estol. O piloto deve chegar até o batente traseiro do manche quando, então, ocorrerá o estol.
Iniciamos na configuração menos crítica, com trem e flapes recolhidos, além potência de motores reduzida. O piloto iniciou a desaceleração e a velocidade foi caindo, com o manche sempre sendo puxado no sentido para trás. O manche atingiu o batente e então o piloto fez uma recuperação rápida, sem que a aeronave apresentasse nenhuma tendência de cair de asa. Se fosse filmado, o observador diria que o ensaio havia sido um sucesso, pronto para ser homologado.
Fui eu, então, repetir o ensaio, para confirmar o resultado.
Após ver o ensaio do piloto da Embraer, eu estava bem tranquilo. Doce surpresa….
Depois de chegar à altitude do ensaio, reduzi os motores e iniciei a redução da velocidade puxando o manche progressivamente para trás. A velocidade foi caindo e eu continuei puxando o manche de modo contínuo. A força que eu precisava exercer no manche para manter o nariz da aeronave estável ia aumentando progressivamente, tudo conforme os manuais. Até que num determinado momento, próximo de alcançar o batente traseiro, a força que a aeronave provocava a picar, e que eu ia compensando com uma força a cabrar no manche, simplesmente desapareceu, e o manche mais parecia uma alavanca solta, sem força alguma, todo mole.
Nesse momento, a aeronave bruscamente baixou a asa esquerda, e a aeronave ficou no dorso antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. O coração veio à boca! Ver o solo olhando para cima a bordo de uma aeronave executiva não é uma coisa normal. Acostumado a voar com cadeira de ejeção, “aquela santa para as horas difíceis”, sentir-se sem controle e sem a tal “santa” é realmente uma situação bem desconfortável, que provoca uma saudade intensa de casa. Devagar retomei o controle da situação, e suavemente consegui sair da posição de voo de dorso e retomar a atitude correta. Na manobra, perdemos alguns milhares de pés de altitude.
Com a aeronave agora controlada, respirei fundo e pedi ao piloto de prova da Embraer que repetisse a manobra para que eu pudesse analisar melhor o que houve. O piloto tomou os comandos, subiu para a altitude de segurança e iniciou os preparativos para mais um estol. Dessa vez, meus olhos ficaram bem atentos para ver os detalhes de como ele fazia a manobra. Eu precisava descobrir qual o “truque de mágica” que ele estava usando para poder controlar a aeronave naquelas condições.
Não perca, amanhã, a segunda parte da história!
(narrativa enviada pelo leitor “ProvaX”, assim como a foto menor)
Aproveitando o tema “Aviação Comercial”
Europe’s Clean Sky R&D Advances Regional Aircraft
http://www.aviationweek.com/Article.aspx?id=/article-xml/AW_05_06_2013_p62-573171.xml